Sobre a autora: Mariana Vicente é licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa e mestranda em Law and Management pela NOVA School of Law e pela NOVA SBE.
A 23 de Fevereiro, a Comissão Europeia divulgou o seu projeto de diretiva relativa ao dever de diligência das empresas e a responsabilidade empresarial. Esta diretiva exige que as grandes empresas da União Europeia e algumas empresas não europeias, mas que conduzem uma parte significativa dos seus negócios na Europa, avaliem os seus reais e potenciais impactos em matéria de direitos humanos e ambientais, ao longo das suas operações e a jusante das suas value chains, bem como tomem medidas para prevenir, mitigar e remediar os danos identificados, ou que devessem ter sido identificados.
Não há bela sem senão, e por isso, as empresas que não cumpram o seu dever de diligência e não implementem medidas preventivas e reparativas, enfrentam sanções administrativas e responsabilidade civil.
O Artigo 4 cobre o dever de diligência em moldes gerais, apresentando os deveres das empresas, que passam por integrar o dever de diligência nas suas políticas internas, de identificar reais ou potenciais impactos negativos, e acabar com eles ou minimizar os danos que eles causam, obriga também as empresas a ter um procedimento de queixas, bem como monitorizar e comunicar acerca das suas práticas relativas ao dever de diligência.
O Artigo 5 cobre a integração do dever de diligência nas políticas internas da empresa, sendo que esta integração tem que expor qual é a abordagem da empresa ao dever de diligência (a curto e longo prazo), o seu plano para elaborar um código de conduta que deve ser atualizado todos os anos, e quais são os processos implementados para monitorizar o cumprimento do código de conduta. O código de conduta deve ser aplicado também a parceiros com quem a empresa tenha relações comerciais estabelecidas e habituais.
O Artigo 6 cobre a identificação dos reais e potencial impactos adversos que surjam das operações da empresa ou das suas subsidiarias, mas acrescenta um ponto relevante que contribui para termos um processo de responsabilização mais eficiente – cobre também impactos que surjam de relações comerciais estabelecidas ou habituais na cadeia de fornecimento da empresa.
O Artigo 6(2) oferece uma perspetiva nova e interessante, criando uma exceção de forma a incluir empresas que não cumpram os critérios nominativos de lucros > 150 milhões de euros e > 500 empregados, mas que tenham > 40 milhões de euros em lucros no ano anterior e > 250 empregados, estão sujeitas à Diretiva se o seu ramo setorial for no setor têxtil, de agricultura, de alimentação ou de extração de recursos minerais. Aqui vemos uma clara intenção de proteção setorial nestes setores que o legislador considerou como mais sensíveis e vulneráveis a sofrerem ou causarem impactos adversos.
O Artigo 6(3) é muito interessante, no sentido em que impõe deveres de diligência a agentes financeiros no mercado, como bancos, fundos de investimento, instituições de crédito, impondo-lhes um dever de diligência previamente a prestarem serviços financeiros. O objetivo desta alínea é de cortar o financiamento a empresas que não cumpram com os seus deveres de diligência. Seria relevante para nós vermos um artigo mais ambicioso, tendo em conta que este dever de diligência poderia ter uma segunda fase de verificação, de modo a garantir o cumprimento dos deveres de diligencia por parte da empresa, após a utilização do financiamento obtido através de um agente financeiro.
O Artigo 7 cobre a prevenção dos potenciais impactos adversos, e cobre também, quando esta prevenção não é possível, a mitigação dos impactos potenciais que devessem ter sido identificados sob o Artigo 6. O Artigo 7(2) impõe um dever de elaborar e implementar um plano de ação preventivo, por parte da empresa, em consulta com stakeholders afetados. As empresas devem, sob a égide deste artigo, procurar garantias contratuais dos seus parceiros comerciais que garantam o seu respeito e cumprimento do código de conduta da empresa. Devem também investir na gerência, infraestruturas e processos, de forma a moldar a sua empresa aos deveres de diligência a que está sujeita.
O Artigo 7 estabelece uma proteção interessante relativamente às Pequenas e Médias Empresas (doravante, “PME’s”), que requer que as Grandes Empresas sujeitas ao cumprimento desta Diretiva auxiliem as PME’s nos casos em que o cumprimento do seu código de conduta pudesse colocar em causa a sua viabilidade económica. As garantias contratuais que as empresas devem procurar obter por parte dos seus parceiros comerciais devem ser acompanhadas por medidas de verificação de cumprimento, de modo a representarem mais do que promessas vazias e despojadas de impacto. A verificação pode ser feita através de iniciativas industriais ou verificação independente – mais uma vez, vemos aqui o bastião de proteção das PME’s, que obriga a que, caso seja feita uma verificação independente, os custos sejam cargo da Grande Empresa.
É também relevante olhar aos Artigos 7(5) e 7(6), sendo que estes representam já uma sanção para as empresas que estejam numa cadeia de fornecimento ou relação comercial da qual tenha surgido um impacto adverso. A empresa é forçada a cortar relações comerciais com o parceiro que causou o impacto adverso de forma permanente, caso o potencial impacto ou impacto concretizado seja severo. É forçada a suspender temporariamente as suas relações comerciais com o parceiro caso tenha razoes relevantes para acreditar que os esforços de prevenção e mitigação deem frutos num futuro próximo.
O Artigo 8 elabora sobre a eliminação dos impactos adversos. As empresas devem tomar medidas para terminar estes impactos adversos, que tenham sido identificados ou devessem ter sido identificados nos termos dos Artigos anteriores. As empresas são obrigadas a neutralizar os impactos adversos ou minimizar os seus danos, sendo que a ação terá que ser proporcional à escala do impacto adverso. As empresas devem também desenvolver um plano corretivo de ação caso não consigam neutralizar o impacto de imediato, bem como estabelecer um indicador de medição de melhoria em relação a esse impacto. As garantias contratuais que devem ser obtidas dos parceiros comerciais, devem também ser alvo de planos de ação corretivos, caso o impacto surja dessas relações.
Os Artigos 9 e 10 são extremamente relevantes e estão interligados. O Artigo 9 exige que seja implementado um processo eficaz de reclamações e queixas, em que pessoas e organizações podem submeter queixas relativas a potenciais ou reais impactos adversos ambientais ou de direitos humanos, em respeito da operação da empresa visada, subsidiárias ou parceiros comerciais na sua cadeia de valor. É interessante ver que o legislador estabeleceu uma camada adicional de proteção para os queixosos, sendo que sempre que uma queixa é tida como infundada, os Estados-Membros são responsáveis por fazer uma verificação de que a queixa dispensada assim o foi com justificação, e não de forma errada. Os queixosos têm também o direito de pedir seguimento e inquirir acerca do estado da sua queixa, bem como pedir reuniões com representantes da empresa para discutir os impactos que lhe foram causados ou que potencialmente lhe serão causados, caso estes sejam entendidos como severos.
O Artigo 10 obriga as empresas a monitorizar as suas operações e medidas preventivas, bem como das suas subsidiárias e cadeia de valor, e de parceiros comerciais estabelecidos. Este processo de monitorização deve medir a eficácia da identificação, prevenção, mitigação, e neutralização dos reais e potenciais impactos adversos a nível de direitos humanos e ambientais. Esta avaliação deve ser feita com base em indicadores qualitativos e quantitativos, e feita pelo menos uma vez por ano. Os resultados desta monitorização devem ser refletidos na política interna do dever de diligência da empresa.
Em suma, e de forma a orientar a leitura do diploma, os vários temas são aprofundados nos seguintes Artigos:
- Integração de dever de diligência em políticas internas (Artigo 5);
- Identificação de atuais ou potenciais impactos adversos (Artigo 6);
- Prevenção e mitigação de potenciais impactos adversos, e neutralização e mitigação dos mesmos (Artigos 7 e 8);
- Criação de procedimento de queixas (Artigo 9);
- Monitorização de políticas de dever de diligência (Artigo 10);
- Comunicação do cumprimento do dever de diligência (Artigo 11).
A União Europeia oferece-nos então, este diploma com várias soluções inovadoras, mas ainda algumas que deixam um pouco a desejar. Vindo a ser aprovado e entrando em vigor, este diploma irá simbolizar um verdadeiro terremoto, e irá impelir até as empresas mais displicentes em matérias de direitos humanos e ambientais a tomarem consciência dos mesmos. Apesar de não se aplicar a todo o universo empresarial, mas sim a uma pequena camada deste tecido económico que tece as suas teias por toda a União Europeia, é já um excelente sinal de mudança e de tomada de consciência.
Citação sugerida: M. Vicente, ‘Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas e a Responsabilidade Empresarial – Análise Sumária dos Artigos 4-11, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 23 de Maio 2022.
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