As implicações da proposta do novo regime de diligência da U.E. no Direito Internacional Privado

Sobre a autora: Benedita Sequeira frequenta atualmente o primeiro ano do Mestrado em Direito Internacional e Europeu na Nova School of Law. É Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, onde concluiu a Licenciatura em Direito com a média final de 17 valores (“A”). Leciona as Unidades Curriculares de Direito Internacional Privado, Direito Processual Civil, Direito Executivo e Direito Fiscal. Adicionalmente, Benedita é Assistente de Investigação no Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment. Os seus principais interesses de investigação abrangem o Direito Internacional Privado, Direito Europeu e Direitos Humanos.

 

 

Na sequência das conclusões apontadas pelo Estudo para a Comisssão Europeia, o Comissário Didier Reynders, em abril de 2020, apela à adoção de uma legislação de responsabilização das empresas pelos abusos no campo dos direitos humanos e da proteção ambiental. No dia 27 de janeiro de 2021, o Comité dos Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu votou uma proposta de iniciativa legislativa, que visa a criação de um dever de diligência obrigatório para as empresas europeias, bem como para as empresas que operam no mercado único europeu. Esta proposta assegura a sua responsabilidade pela conduta causadora ou potenciadora de prejuízos para os direitos humanos ou para o ambiente, que ocorram na respetiva cadeia internacional de produção, ou no contexto das operações da empresa, através de atos das respetivas subsidiárias.

Ora, as violações de direitos humanos e ambientais que ocorram no contexto da atividade empresarial transnacional têm vindo a ser trazidas à justiça através da instauração de ações de responsabilidade civil extracontratual, baseando-se na omissão de cuidado por parte da empresa-mãe ou da empresa que controla uma determinada cadeia de produção, no contexto de cujas atividades e relações os danos ocorreram. Na medida em que tratamos de relações privadas internacionais, que geram conflitos de leis e conflitos de jurisdições, várias propostas de direito internacional privado incluem o texto da proposta de lei recentemente votada.

Contém o “draft report” do Parlamento Europeu uma proposta de alteração ao Regulamento Bruxelas I bis (1), relativo à competência judiciária em matéria civil e comercial, e que diz respeito ao conflito internacional de jurisdições.

A proposta de alteração do Regulamento surge das dificuldades verificadas, nomeadamente nos casos Shell e Vedanta, de estabelecer a jurisdição dos tribunais dos Estados Membros relativamente aos atos e omissões praticados pelas empresas subsidiárias. Aquilo que se verifica, até ao momento, é que, sendo possível estabelecer a jurisdição do tribunal do Estado-Membro em que a empresa-mãe ou cabeça da cadeia de produção está sediada, atendendo ao disposto nos artigos 4.º e 63.º do Regulamento, uma vez que o mesmo não se aplica quanto a empresas sediadas fora da União Europeia, os tribunais do foro devem recorrer às normas internas de distribuição internacional de competências para estabelecer a jurisdição quanto à empresa subsidiária ou fornecedora. Isto leva a que ações intentadas contra a empresa subsidiária causadora de prejuízo e a empresa líder, responsável por se eximir de praticar a diligência necessária, possam não ser decididas pelo mesmo tribunal, ficando a decisão relativa à jurisdição inteiramente dependente das regras de direito internacional privado do foro.

Este problema de jurisdição tem vindo a ser resolvido com base na interconexão das ações, admitindo-se o seu processamento conjunto (solução adotada pelo Tribunal de Apelação de Haia, no caso Shell), ou com base na denegação do acesso à justiça na jurisdição internacionalmente competente, o que permitiu ao Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido estabelecer-se como competente para julgar o caso Vedanta.

O “Draft Report” recentemente votado no Parlamento Europeu propõe duas alterações ao Regulamento Bruxelas I bis: (i) a inclusão de um novo parágrafo no artigo 8.º, prevendo que uma empresa sediada num Estado Membro possa também ser demandada no Estado Membro onde opera ou no lugar onde o dano ocorreu, quando este possa ser imputado a uma empresa subsidiária ou a uma empresa com a qual se mantena uma relação de negócios; e (ii) o aditamento do artigo 26.º-A, que prevê que nas ações de responsabilidade civil baseadas na violação de direitos humanos no contexto da atividade empresarial, os Tribunais do Estado Membro onde se encontra sediada a empresa-mãe ou líder podem, excecionalmente, considerar-se competentes, quando o direito de acesso à justiça e o direito a um processo equitativo assim o exijam.

Quanto ao conflito de leis gerado no contexto das ações de responsabilidade civil transnacionais, importa determinar qual a lei aplicável à luz do Regulamento Roma II (2). Nos termos do Regulamento, enquanto regra geral, temos que a lei aplicável às obrigações extracontratuais é a lei do lugar do dano (lex loci damni – artigo 4.º), i.e., a lei do lugar onde a lesão ocorre. Põe-se o problema, quanto a estas particulares ações de responsabilização civil, de a lei do lugar do dano corresponder, geralmente, à lei de um país terceiro, com uma implementação potencialmente menos forte do Estado de Direito, não permitindo o efetivo acesso à justiça por parte das vítimas, ou, pelo menos, diminuindo sensivelmente as perspetivas de sucesso quanto à ação instaurada. Uma outra forma de determinação da lei aplicável consiste na escolha pelas partes, ao abrigo do artigo 14.º do Regulamento, após ocorrer o ato lesivo. Não obstante esteja consagrada a possibilidade de electio iuris, a sua relevância é limitada no contexto de que tratamos, verificando-se uma disparidade vincada de poderes entre as partes, e sendo marcadamente difícil a chegada a um acordo de compromisso.

Uma forma de contornar estas dificuldades será a caracterização do dever de diligência como sendo uma norma de aplicação imediata, ao abrigo do artigo 16.º do Regulamento, garantindo assim a sua aplicação independentemente da solução consagrada na lei competente por via da solução conflitual de Roma II. Também a reserva de ordem pública do foro funciona como importante garantia mínima, sendo incompatível com o sentido ético-jurídico fundamental do Estado do foro a pura e simples denegação de justiça. Embora estas duas exceções deem ao Estado do foro a possibilidade de aplicar a própria lei, a sua atuação carece ainda de ser confirmada na prática. Do mesmo modo, não foi a possibilidade de colocação em ação destas exceções integrada no “draft report” do Parlamento Europeu,

Foi também introduzida no “draft report” do Parlamento Europeu, a aditação de um  novo artigo 6.º-A ao Regulamento Roma II:Nos termos deste, poderão as vítimas optar pela aplicação (i) da lei do lugar onde ocorreu o dano, (ii) da lei do lugar da comissão do dano (lex loci delicti comissi), i.e., onde se localiza o evento que dá origem ao dano, e que normalmente corresponde à sede da administração da empresa causadora de prejuízo, (iii) da lei do lugar onde a empresa-mãe tema  sua sede ou, (iv) quando a empresa não tenha sede num Estado Membro, a lei do Estado onde opera.

A adoção da proposta no que toca às matérias de Direito Internacional Privado tem sido controversa. Por um lado, advoga-se pela adoção das propostas de alteração aos Regulamentos, considerando que as alterações promovem o direto de acesso à justiça das vítimas. Por outro lado, critica-se a amplitude das cláusulas de escolha de jurisdição e lei aplicável, que atentam contra a certeza e segurança jurídicas, colocando as empresas numa situação permanente de incerteza e fazendo crescer de forma desproporcional os custos de compliance.

Todas estas questões serão discutidas em detalhe no Webinar Corporate Due Diligence and Private International Law  a ter lugar no dia 25 de fevereiro de 2021, pelas 14h, e organizado pelo “Nova Centre for Business, Human Rights and the Environment”; com o apoio da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia e que conta com a participação de vários académicos e profissionais da área. Esta questão será, também discutida, na sessão plenária a ter lugar brevemente e onde será votado o “draft report” no Parlamento Europeu.

 

 

Notas de rodapé:

  1. Regulamento (UE) n. ° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
  2. Regulamento (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II).

 

 

Citação sugerida: B. Sequeira “As implicações da proposta do novo regime de diligência da U.E. no Direito Internacional Privado”, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 18 Fevereiro 2021.