Sobre a autora: A Benedita Sequeira é Assistente de Investigação no NOVA Center for Business, Human Rights and the Environment, e estudante do 2º ano do Mestrado em Direito Internacional e Europeu na NOVA School of Law. A sua dissertação de Mestrado versa sobre temáticas de Direitos Humanos e Empresas, estudando “A lei aplicável às ações de responsabillidade civil extracontratual movidas contra empresas pela violação de direitos humanos, ao abrigo do Regulamento Roma II: será necessário adotar regras especiais neste âmbito?”. A Benedita é Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, onde se licenciou em Direito em 2020. É responsável por lecionar aulas práticas de Direito Internacional Privado, Direito Processual Civil, Teoria Geral do Direito Civil e Filosofia do Direito e Metodologia Jurídica. Toma parte na primeira edição do projeto da UE ““Young Fair Trade Advocates Academy.
No passado dia 17 de agosto de 2021, foi divulgada a terceira revisão do Projeto de Tratado Vinculativo sobre Direitos Humanos e Empresas, destinado a regular a conduta das empresas em relação aos direitos humanos à escala global e com caráter obrigatório.
Foi em junho de 2014 que o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou em Genebra a resolução proposta pelo Equador e a África do Sul, estabelecendo um grupo de trabalho intergovernamental (o (IGWG) (1) incumbido com a tarefa de elaborar um tratado internacional vinculativo versando sobre o respeito dos direitos humanos pelas a empresas, incluindo as empresas transnacionais.
Visa esta iniciativa colmatar a falta, ao nível internacional, de instrumentos que forcem as empresas a respeitar os direitos humanos (2) e a cumprir com o seu dever de diligência, evitando e mitigando os potenciais e atuais impactos que as suas atividades ou relações comerciais possam causar nos direitos humanos.
O primeiro projeto (Zero Draft) foi apresentado em julho de 2018, seguindo-se a publicação, em julho de 2019, de uma versão revista (Revised Draft), de uma segunda revisão (Second Revised Draft) em agosto de 2020 e, finalmente, da terceira revisão (Third Revised Draft) em agosto de 2021, em virtude das sucessivas consultas com os interessados.
Na 46.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que teve lugar a 22 de fevereiro de 2021, foi discutida a segunda revisão do Tratado sobre Direitos Humanos e empresas, tendo sido aprovadas várias alterações, das quais resulta a adoção da terceira revisão. A Terceira Revisão do Tratado vai ser discutida no contexto da sétima sessão do IGWG. Esta sessão, a ter lugar entre os dias 25 e 29 de outubro de 2021, será aberta a membros das Nações Unidas, Organizações Não-Governamentais (ONG), Instituições Nacionais de Direitos Humanos, sindicados e associações empresariais acreditadas pela ONU.
Vejamos os pontos essenciais da mais recente versão do Tratado sobre Direitos Humanos e empresas:
Várias recomendações de revisão do preâmbulo foram discutidas, tendo sido sugerida a referência a instrumentos de direito internacional ao invés da enumeração de Tratados ou documentos específicos não ratificados por todos os Estados. Foram ainda sugeridas alterações a várias passagens do preâmbulo, nomeadamente para reforçar a referência aos defensores dos direitos humanos, aos direitos das crianças, às áreas de conflito armado e a prevalência dos direitos humanos em relação aos tratados de comércio internacional.
A terceira revisão do Tratado mantém a estrutura, escopo e, quanto ao conteúdo, as propostas fundamentais das versões anteriores de 2020 e 2019, aprofundando alguns pontos da redação e clarificando certas ambiguidades.
O Artigo 1.º do Tratado introduz pequenas alterações às definições já expostas na segunda revisão, definindo: vítima, abuso de direitos humanos, atividade empresarial, atividade empresarial de caráter transnacional, relação empresarial e organização de integração regional.
O Artigo 2.º estabelece o propósito do Tratado, que consiste em clarificar e facilitar a implementação efetiva da obrigação dos Estados respeitarem e protegerem, cumprirem e promoverem os direitos humanos no contexto da atividade empresarial e comercial, em particular quando de caráter transnacional, bem como clarificar e assegurar o respeito das empresas pelas suas obrigações relativas aos direitos humanos, prevenindo abusos e garantindo acesso à justiça e a remédios prontos, efetivos e adequados para as vítimas de abusos de direitos humanos no contexto de atividades empresariais, bem como facilitando a cooperação internacional neste âmbito.
Nos termos do Artigo 3.º, que define o âmbito de aplicação do Tratado, este aplica-se a todas as atividades empresariais e comerciais, quer domésticas quer transnacionais, abrangendo o respeito por todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, bem como todos os direitos fundamentais de cariz obrigatório nos Estados que tomem parte no Tratado.
O Artigo 4.º dispõe quanto aos direitos das vítimas. Logo no n.º 1 estabelece-se que “as vítimas de violações de direitos humanos no contexto da atividade empresarial devem ver protegidos todos os direitos humanos e liberdades fundamentais internacionalmente reconhecidos.” Estas devem ser tratadas com humanidade e deve ser respeitada a sua dignidade e direitos humanos, incluindo o direito à segurança, integridade física e psicológica e o direito à privacidade. Deve ser garantido às vítimas de abusos por parte de corporações o direito à vida, à integridade, à liberdade de expressão e de associação e à liberdade de deslocação.
As vítimas têm o direito de acesso à justiça, ao remédio efetivo e a mecanismos de reparação nos termos estabelecidos no Tratado, em condições de não-discriminação, devendo ser-lhes prestada a informação e representação jurídica apropriadas, nomeadamente sensíveis ao género, e necessárias ao sucesso da ação. Deverão, ainda, ter o direito a fazer queixa, e protegidos de qualquer interferência ilegal contra a sua privacidade, intimidação e medo de represálias. Foi eliminada, aquando da terceira revisão do tratado, a provisão relativa à garantia de acesso a meios diplomáticos e consulares apropriados, facilitando o acesso à justiça em casos de cariz transnacional.
Os Estados signatários do Tratado deverão, ao abrigo do Artigo 5.º, proteger as vítimas, seus representantes, famílias e testemunhas, de qualquer interferência ilegal com os seus direitos humanos. Deverão, ademais, tomar medidas adequadas e efetivas para garantir um ambiente seguro para defensores de direitos humanos.
A terceira revisão do Tratado vem reforçar a provisão do Artigo 6.º, intitulado de prevenção. Esta postula que os Estados regulem a atividade empresarial dentro do seu território, jurisdição ou controlo, inclusive de empresas multinacionais ou que desempenhem atividades de caráter transnacional. Esta regulação deve ser levada a cabo através de medidas políticas e legais que garantam o respeito pelos direitos humanos, prevenindo e mitigando a ocorrência de abusos decorrentes da atividade empresarial, cadeias de produção ou relações comerciais.
Os Estados deverão, pois, tornar obrigatório para as empresas o exercício do dever de diligência em relação aos direitos humanos. Este dever inclui:
– a identificação, avaliação e publicação de qualquer atual ou potencial abuso nos direitos humanos decorrente quer da atividade da empresa em causa, quer das suas relações comerciais;
– a tomada de medidas apropriadas para evitar, prevenir ou mitigar riscos ou impactos identificados;
– a monitorização da eficácia dos mecanismos implementados;
– a comunicação regular das medidas e políticas adotadas às partes interessadas.
Ademais, as empresas devem levar a cabo, no âmbito do dever de diligência:
– avaliações de impacto ambiental, laboral e nos direitos humanos; integrar a perspetiva de género nas suas medidas de diligência;
– consultar os indivíduos ou comunidades afetadas pela sua atividade, em particular: os grupos vulneráveis ou particularmente afetados pelos danos nos direitos humanos causados pela atividade empresarial (cfr.: mulheres, crianças, portadores de deficiência, pessoas de descendência Africana, idosos, migrantes, refugiados, deslocados internos e populações de áreas sob ocupação ou conflitos armados) e garantindo, nomeadamente, a consulta de populações indígenas, com o seu consentimento;
– reportar matérias não financeiras relevantes publica e periodicamente; e
– integrar o dever de diligência em relação aos direitos humanos nos respetivos contratos comerciais.
Os Estados deverão assegurar a implementação de medidas nacionais que garantam a observância deste dever de diligência.
O Artigo 7.º, intitulado de acesso ao remédio, estabelece a obrigação de os Estados assegurarem o acesso à justiça, acrescentando-se, aquando da terceira revisão a necessidade de uma justiça em prazo razoável, mediante processo equitativo, através de meios judiciais e não judiciais, acautelando, em especial os direitos das mulheres, grupos marginalizados e vulneráveis. As leis nacionais deverão assegurar o acesso à informação relevante, nomeadamente através da cooperação internacional, e a adequada e efetiva representação legal das vítimas, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
Os Estados deverão rever ou implementar provisões que permitam a inversão do ónus da prova, quando apropriado, e implementar mecanismos eficazes de execução das decisões.
O Artigo 8.º refere-se à responsabilidade legal, impondo aos Estados que implementem sistemas adequados e efetivos de responsabilização de pessoas singulares e coletivas que conduzam atividades empresariais por violação de direitos humanos no seu território, jurisdição ou controlo. Neste sentido, os Estados devem:
(i) Assegurar a responsabilização das empresas, independentemente da responsabilização dos indivíduos e sem tornar a responsabilidade civil dependente da responsabilização criminal, ou equivalente, para os mesmos atos.
(ii) Devem adotar medidas civis, criminais e/ou administrativas que sejam proporcionais, efetivas e dissuasivas, bem como reparações adequadas, efetivas e sensíveis à idade e ao género para as vítimas de abusos de direitos humanos por parte de empresas.
(iii) Assegurar a responsabilidade das empresas pela falha em evitar que outra empresa ou indivíduo com quem é mantida uma relação comercial causem ou contribuam para abusos de direitos humanos quando a primeira controla, gere ou supervisiona a segunda, não tomando medidas adequadas à prevenção do abuso.
(iv) Garantir a responsabilidade criminal ou equivalente das empresas por abusos de direitos humanos que constituam crimes ao abrigo da lei internacional dos direitos humanos, costumes internacionais ou lei nacional, e, outrossim, a responsabilidade criminal por atos ou omissões que consubstanciem tentativa, participação ou cumplicidade na comissão de crimes.
(v) Devem, ademais, requerer que pessoas singulares ou coletivas que levem a cabo atividades empresariais no seu território, jurisdição ou sob o seu controlo, incluindo empresas transnacionais, adotem e mantenham garantias financeiras, incluindo seguro ou outra garantia financeira, por forma a cobrir possíveis ações de compensação por danos causados. Esta é uma importante precisão da terceira revisão.
O Tratado clarifica que a implementação de processos de diligência relativa aos direitos humanos não absolve automaticamente nem tão pouco exclui a responsabilidade da empresa por causar ou contribuir para a violação de direitos humanos ou falhar na prevenção de tais abusos.
O Artigo 9.º refere-se às regras de distribuição de competência internacional dos tribunais. Estas regras foram clarificadas, aquando da mais recente revisão, por forma a reforçar o acesso à justiça por parte das vítimas de abuso, bem como evitar o fenómeno de “forum shopping”.
É atribuída jurisdição aos tribunais do Estado em que:
– ocorreu o abuso de direitos humanos ou o mesmo produziu efeitos (lex loci damni);
– um ato ou omissão que contribuiu para o abuso ocorreu (lex loci delicti commissi);
– a pessoa singular ou coletiva que alegadamente cometeu ou ato ou omissão que causou ou contribuiu para o abuso no contexto das respetivas atividades empresariais está domiciliada (forum domicilii).
– Por último, de acordo com a alínea d), introduzida na terceira revisão, é atribuída jurisdição ao Estado em que a vítima é domiciliada ou nacional.
Os tribunais devem evitar obstaculizar a atribuição de competência internacional, incluindo através do uso da doutrina de forum non conveniens.
Os tribunais terão, ademais, competência para julgar quaisquer casos conexionados com casos contra pessoas singulares ou coletivas domiciliadas no Estado do foro, e, no caso de nenhum outro foro efetivo garantir um processo judicial justo, estabelece-se um forum necessitatis.
O Artigo 10.º requer que os Estados adotem as medidas necessárias para que as prescrições não afetem o início dos procedimentos legais em relação a abusos de direitos humanos por parte de empresas.
Ao abrigo do Artigo 11.º, às matérias processuais deverá ser aplicada a lei do foro. O Regulamento não determina qual a lei aplicável quanto às matérias substanciais, não obstante deverá ser possível, a requerimento da vítima, que a lei aplicável seja:
– a lei do Estado onde os atos ou omissões ocorreram ou produziram os respetivos efeitos (lex loci damni), ou
– a lei do Estado onde a pessoa singular ou coletiva que alegadamente cometeu o abuso está domiciliada (lex domicilii).
Deverá ser assegurada a assistência jurídica mútua e a cooperação internacional para levar a cabo investigações transnacionais com sucesso, à luz do Artigo 12.º. A cooperação de boa fé na implementação das obrigações do Tratado vem estabelecida no Artigo 13.º.
Nos termos do Artigo 14.º (articulação com princípios e instrumentos de direito internacional), os Estados devem cumprir com as obrigações decorrentes do Tratado respeitando os princípios da soberania nacional e integridade territorial do Estado. Para além disto, nenhuma provisão do Tratado deve afastar provisões mais exigentes na proteção de direitos humanos e acesso à justiça.
As restantes provisões do Tratado – Artigos 15.º a 24.º -, que não analisaremos neste âmbito, versam sobre matéria de Acordos Institucionais, Implementação, Relação com os protocolos, Resolução de litígios, Assinatura, Ratificação, Aceitação, Aprovação e Entrada em vigor.
Notas de rodapé:
(1) Grupo de trabalho intergovernamental sobre empresas transnacionais e outras empresas no que concerne ao respeito pelos direitos humanos (IGWG). Veja-se: https://www.ohchr.org/en/hrbodies/hrc/wgtranscorp/pages/igwgontnc.aspx
(2) Ao nível internacional, cumpre apontar a adoção de vários instrumentos não vinculativos, de entre os quais: os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, desenvolvidos por John Ruggie e adotados por unanimidade pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 2011, e que assentam numa estrutura de 3 pilares: o dever dos Estados de proteger, a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos e o acesso a mecanismos de reparação; e as Linhas Diretrizes da OCDE para as empresas multinacionais, adotadas em 1976 e revistas em 2011, que visam promover contribuições positivas pelas empresas para o progresso económico, ambiental e social à escala global.
Citação sugerida: B. Sequeira, ‘A terceira revisão do Projeto de Tratado Vinculativo sobre Direitos Humanos e Empresas’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 18 Outubro 2021.
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