🇵🇹 Conduta Empresarial Responsável na regulação mineral baseada nas Diretrizes da OCDE: Um estudo comparativo entre Brasil e Austrália

Amanda de Sales Pereira

Mestre em Tecnologias e Inovações Ambientais pela Universidade Federal de Lavras – UFLA; Pós-Graduada em Direito da Mineração pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios – CEDIN; Doutoranda em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Lavras – UFLA; Advogada atuante nas áreas do Direito Ambiental e Direito Minerário.

 

Introdução

As Diretrizes da OCDE para as Empresas Multinacionais são implementadas pela instituição dos Pontos de Contato Nacionais (PCN). Portanto, aqueles governos que aderiram às diretrizes são obrigados a implementar os PCN’s, os quais regem-se pelos critérios de equivalência funcional. O princípio da equivalência funcional compreende a ideia de que independentemente de sua estrutura organizacional, os Pontos de Contato Nacionais devem operar de forma a garantir um determinado nível de eficácia equivalente, visando o melhor desempenho na organização e disseminação das Diretrizes da OCDE. Os Pontos de Contatos Nacionais possuem uma natureza funcional dúplice, o que significa dizer que, ao mesmo tempo em que incumbe a eles implementar as instâncias específicas, funcionando como um órgão mediador entre a requerida e o reclamante, é também função do PCN implementar a disseminação das Diretrizes e guias da OCDE.

O estabelecimento dos PCN além de suportar a disseminação das Diretrizes para as empresas multinacionais, também permite que, através das instâncias específicas sejam solucionados casos que envolvam ações relacionadas à conduta das empresas de forma célere e eficaz. Não obstante, em alguns setores, como ocorre com a indústria extrativista, as informações contidas nos Guidelines da OCDE nem sempre são disseminadas entre os órgãos que desempenham a função regulatória, dificultando, por sua vez, a implementação de novos caminhos para a concessão de licenças de exploração e para fiscalização das outorgas de direitos minerários.

A estruturação dos Pontos de Contatos Nacionais é um dos principais meios de se garantir que as Diretrizes da OCDE sejam implementadas no setor privado, exigindo das empresas uma conduta empresarial responsável. Os Pontos de Contato Nacionais no Brasil e na Austrália guardam algumas distinções no que se refere à sua estrutura e forma de operação. De forma geral, os Pontos de Contato Nacionais podem ser classificados como: agências únicas, interagências, multipartidárias e baseadas em especialistas. Em termos de visibilidade e imparcialidade, algumas estruturas podem representar maiores benefícios. Assim, de acordo com as Diretrizes para Pontos de Contato Nacionais sobre Estruturas e Atividades, o formato de Agência única pode trazer maiores benefícios no que se refere à acessibilidade e transparência, tendo em vista a facilidade na comunicação entre as partes responsáveis e suas competências. Por outro lado, esse formato pode ser objeto de críticas devido ao caráter excessivamente disciplinar. Além disso, nesse tipo de formato, sem a presença de um órgão consultivo, é possível que haja prejuízo aspectos importantes como equidade e envolvimento com stakeholders.

O presente artigo tem por objetivo analisar o desempenho dos Pontos de Contatos Nacionais da Austrália e do Brasil, com o intuito de aferir se os mesmo têm tido condições de exercer suas funções de modo imparcial, com transparência, visibilidade e acessibilidade, que consistem nos quatro critérios para que seja verificada a equivalência funcional em sua atuação junto às Instâncias específicas.

 

O setor de mineração no Brasil e na Austrália

A mineração representa um importante papel nas economias brasileira e australiana, contribuindo de forma significativa para o Produto Interno Bruto (PIB), geração direta e indireta de empregos, desenvolvimento regional em áreas diversas, auxiliando no desenvolvimento de infraestruturas como estradas, energia e habitação.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), no Brasil a mineração respresenta 4% do Produto Interno Bruto, enquanto na Austrália, a contribuição é de aproximadamente 9%, segundo o Minerals Council of Australia .

Além disso, a mineração é responsável por atrair um grande número de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação. No Brasil e na Austrália estão localizadas algumas das mais importantes empresas mineradoras do mundo, tais como Vale, BHP e Rio Tinto. É importante ressaltar a coordenação institucional do setor como um importante fator para garantia da qualidade de vida e do acesso aos recursos pelas comunidades que dependem diretamente dos empreendimentos mineradores.

A expansão da mineração na década de 1990 contribuiu para o surgimento de diversas empresas   no setor. Ao mesmo tempo, começou a ser disseminada uma ideia de que tratava-se de um setor produtivo responsável pelo emprego de práticas não sustentáveis e prejudiciais ao meio ambiente.

A partir disso, notou-se a divulgação de Normas Ambientais e Sociais do Banco Mundial para que se estabelecesse um conjunto de 10 normas destinadas a apoiar projetos com vistas a identificação de riscos ambientais e sociais.

Também algumas iniciativas de certificação têm sido promovidas pela ARM (Alliance for Responsible mining) criada para apoiar mineradores artesanais a buscarem a regularização de suas atividades. A iniciativa de certificação de minerais partiu da Austrália e tem por objetivo a criação de uma Certificação Internacional de Minerais.Os princípios da conduta empresarial responsável (CER) são vistos como padrões de comportamento corporativo que possibilitam o crescimento econômico a ser combinado com os valores sociais e ambientais. Isto vai além da responsabilidade social corporativa, tendo em vista que esta abrange o conjunto de práticas responsivas para operações internas bem como aplicáveis a toda a cadeia de suprimentos.

A conduta empresarial responsável está ligada ainda aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, especialmente o 8, 10 e 16 que compreendem o trabalho digno e desenvolvimento econômico, redução das desigualdades e a paz e a justiça.

Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos publicados pelas Nações Unidas em 2011 estabelecem como segundo princípio que “os Estados devem estabalecer claramente a expectativa de que todas as empresas domiciliadas no seu território e jurisdição respeitem os direitos humanos em todas as suas atividades e operações”, no entanto, sabe-se que por se tratar de um instrumento de soft law, não possuem caráter vinculante, mas orientam as ações das empresas na adoção de condutas responsáveis.

De acordo com o documento publicado pela OCDE no que se refere à implementação dos guias da OCDE para empresas multinacionais, o setor mineral foi responsável por 24% das reclamações direcionadas ao PCN (Ponto de Contato Nacional), somente no ano de 2020.

 

Quais as políticas os governos têm adotado para promover a Conduta Empresarial Responsável no setor de mineração?

Baseado no Princípio da Soberania permanente sobre os Recursos Naturais estabelecida pela Resolução 1803 publicada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, foi reconhecido que as pessoas e as nações possuem o direito à soberania permanente sobre os recursos naturais, os quais devem ser utilizados em benefício da própria nação[1].

O contexto original do Princípio da Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais PSONR é o movimento decolonial e a visão de que a dominação por economias desenvolvidas iriam impedir países subdesenvolvidos de beneficiarem suas próprias comunidades por meio de seus recursos naturais. Baseado neste princípio, é possível que se compreenda que todo país possui direito de regular e exercer autoridade sobre o investimento estrangeiro, criando leis para regular a atividade de acordo com suas próprias prioridades.

A OCDE tem desenvolvido uma série de guias especificamente sobre Conduta Empresarial Responsável. Não obstante, não é uma obrigação que os empreendimentos sigam essas diretrizes. Neste contexto, o papel do Estado é fundamental para que se viabilize a implementação de Condutas Empresariais responsáveis, aplicando eventualmente sanções aquelas empresas que possam não estar operando de acordo com as diretrizes da OCDE.

Em documento publicado sobre a aplicação da Conduta Empresarial Responsável no Brasil foram estabelecidos alguns aspectos que auxiliam o governo a alcançar a conduta empresarial responsável, quais sejam: i) através da regulamentação; ii) facilitação; iii) cooperação; iv) promoção e v) exemplo. A regulamentação pode ser entendida como um fator chave para disseminação da CER, o que perpassa necessariamente pela adesão e ratificação aos instrumentos internacionais. O Brasil já aderiu a diversos Tratados e acordos internacionais, tais como o Acordo de Paris; As diretrizes da OCDE para empresas multinacionais; a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Convenção sobre Diversidade Biológica.

Além disso, dentre os feitos realizados pelo Brasil para implementação da CER, pode ser destacado o desenvolvimento do Plano de Ação direcionado à promoção da Conduta Empresarial Responsável (PACER). Também a adoção de regulamentações que pressionam a adoção de critérios ambientais, sociais e de governança, como a Resolução 4.327, de 2014 pelo Banco do Brasil, indica que alguns passos têm sido dados rumo à implementação de uma conduta empresarial mais responsável.

 

Os Pontos de Contato Nacionais no Brasil e na Austrália

Quanto a estrutura dos PCN, o Brasil adotou o formato interagências, enquanto a Austrália adotou o formato híbrido, onde o PCN está localizado no Tesouro Nacional, porém conta com a participação de examinadores externos. No caso do Brasil, o PCN foi estabelecido pelo Decreto n 11.105/2022[2] que instituiu um Grupo de Trabalho constituído por representantes de Ministérios Diversos, enquanto o PCN da Austrália não foi instituído por meio de um instrumento jurídico formal.

Em análise acerca da condução das alegações de inobservância às diretrizes da OCDE no Brasil, entre os anos de 2020 e 2022, observou-se que dentre os 10 casos avaliados, 5 envolviam empresas de mineração. Dentre os cinco casos avaliados, todos eles tratavam de processos indenizatórios relacionados às estruturas de barragens e pilhas de rejeitos que culminaram com danos de natureza difusa e patrimonial às comunidades. Três das cinco alegações diziam respeito a uma mesma empresa atuante do setor, qual seja, a Vale S/A em virtude de acontecimentos envolvendo a ruptura e/ou ameaça de ruptura de barragens nos municípios de Brumadinho/MG e Nova Lima/MG.

Os principais capítulos das Diretrizes da OCDE alegados foram: i) Políticas gerais; ii) Divulgação; iii) Direitos Humanos e iv) Meio Ambiente.

O que se verifica nos casos tratados no PCN brasileiro é um óbice à atuação ativa destes quando os casos levados à sua apreciação já estão sendo discutidos na seara judicial.

Em uma das Instâncias específicas foi requerido pela alegante que as questões fossem tratadas em conjunto com o PCN do Canadá, “tendo em vista, sobretudo, a força política e institucional da Alegada no Brasil” e o fato de que, segundo os peticionantes, as modificações procedimentais pelas quais passou o PCN Brasil nos últimos biênios teriam retirado do GTI o dever de emitir recomendações, transformando-o em uma simples “Câmara de Mediação de Conflitos”.

A empresa alvo das alegações informou ainda em um dos processos conduzidos no âmbito do PCN que o fórum adequado para discussão de direitos coletivos e sociais são aqueles já instalados por ocasião do ajuizamento das Ações Civis Públicas, não sendo o PCN órgão competente para processar alegações que veiculem “questões de cunho coletivo e social, por razões lógicas e jurídicas”. A Instância Específica do Brasil tem como característica principal a imparcialidade em relação as tratativas com os participantes, o que se confirma inclusive pelo disposto no item 7.5.1 do Manual de Procedimentos das instâncias específicas que estabelece nos seguintes termos: “O PCN Brasil, em razão da sua natureza e por se tratar de um mecanismo potencial de concertação, não faz juízo de valor sobre a conduta das empresas em relação às Diretrizes da OCDE.”

No mesmo período avaliado no PCN da Austrália, identificou -se que dentre 14 alegações de inobservância, 7 são de empresas do setor de mineração. Em um dos casos tratados, a empresa do setor de mineração sofreu alegação sobre a ausência de consulta à comunidade afetada quando da retirada de investimentos sobre o empreendimento localizado em Myanmar em uma zona de conflito.

No caso concreto a empresa não aceitou os bons ofícios, porém ainda diante de sua recusa, o examinador independente solicitou às partes o fornecimento de materiais adicionais para fundamentação das declarações finais. Além disso, o examinador reuniu documentações públicas disponíveis e avaliou se as condutas praticadas pela empresa seriam condizentes com as Diretrizes da OCDE.

Em contrapartida, o Procedimento de reclamações instituído pelo Ponto de Contato Nacional Australiano estabeleceu que as Declarações Finais deverão, quando relevante, incluir a opinião do examinador sobre a implementação das Diretrizes da OCDE pela empresa e se as partes estiveram engajadas durante a condução do procedimento, conforme disposto no item 60.4 do “Complaint Procedures”.

Além disso, de acordo com o documento, quando apropriado, a declaração final poderá informar outras agências governamentais sobre assuntos na declaração final relevantes para suas responsabilidades, incluindo casos de conduta inadequada.

Em outro caso relevante houve a alegação quanto à emissão de material particulado na atmosfera por parte das operações da empresa BHP Biliton na região de Port Healand. Na situação em análise o examinador independente asseverou que à Associação não assistiria razão em alegar afronta à Lei de Proteção Ambiental de WA, posto que o PCN não possui como função avaliar a adequação em relação às normas domésticas. No entanto, ressaltou que o fato da empresa alegar o cumprimento em relação a estas normas não implicaria no reconhecimento de que estaria operando de acordo com as Diretrizes da OCDE.

Neste aspecto, deve-se salientar que o Ponto de Contato Nacional brasileiro, sob alegação de que a demanda estaria já judicializada, omite-se em emitir recomendações à empresa alegada nesses casos, deixando de atentar que independentemente da tutela jurisdicional doméstica, ainda subsiste o dever de avaliação do caso à luz dos critérios de adequação às Diretrizes da OCDE.

A principal distinção que se observa é que o Ponto de Contato Nacional brasileiro possui uma natureza mediadora, enquanto o PCN australiano tem se apresentado mais proativo quanto à emissão de recomendações e análises quanto ao atendimento às diretrizes da OCDE. Além disso o examinador do Ponto de Contato Nacional australiano atua como um relator investigativo na apuração de informações, podendo quando necessário, solicitar informações publicamente disponíveis bem como informações coletadas durante a fase de resolução de disputas, de acordo com o Complaint Procedures.

A estrutura interministerial adotada pelo Brasil, por apresentar uma composição heterogênea, que conta com a participação de órgãos diversos do governo, permite que haja um compartilhamento das decisões e favorece a imparcialidade. A mais importante sugestão para mitigação dos problemas relacionados à confiabilidade é incorporar orgãos de consulta independentes para subsidiar a tomada de decisões, envolvendo partes interessadas externas, à exemplo do que tem sido feito na Austrália com os examinadores independentes, os quais são integrantes de organizações da sociedade civil, setor privado e órgãos reguladores.

Ademais, é possível observar que o PCN brasileiro possui um nível reduzido de confiabilidade das partes, podendo ser verificado que existe uma crença de que o PCN atua como uma espécie de Câmara de Resolução de Conflitos, com uma capacidade reduzida quando comparado ao PCN australiano para emissão de orientações e recomendações.

Uma das sugestões para que sejam efetivamente aplicadas as práticas previstas nos Guias da OCDE, alinhando com a atuação de empreendimentos mineradores é o compartilhamento das Decisões para os órgãos diretamente envolvidos na concessão de títulos minerários e responsáveis pela concessão de Licenças Ambientais.

Em documento publicado sobre a revisão do Ponto de Contato Nacional brasileiro, algumas das sugestões de melhoria realizadas incluíram a necessidade de adoção de um mecanismo de consulta externa, além do fortalecimento da relação de confiança entre as partes. Constatou-se ainda que não existe uma estratégia para promoção da CER junto aos setores específicos e público-alvo, o que acaba por reduzir a confiabilidade entre as partes.

Uma estratégia para melhoria da confiabilidade das partes seria a promoção das Diretrizes para os diferentes setores, focando nos benefícios correspondentes para as empresas e sua imagem perante o cenário internacional.

 

Conclusões

Comparando o recebimento de reclamações nas instâncias específicas, o PCN australiano tem se destacado com maior número de denúncias em relação ao PCN brasileiro. De acordo com a última revisão por pares constatou-se que após reformas realizadas no ano de 2018 o PCN tem aumentado o número de casos e tem se mostrado eficiente na resolução das demandas, o que tem reforçado sua importância e nível de confiabilidade.

Os empreendimentos de mineração, especificamente, lidam com uma série de desafios especialmente no que se refere à obtenção da Licença Social para operar junto às comunidades nas quais estão inseridos. Além disso, no cenário global, uma série de diretrizes têm sido divulgadas para que haja uma maior adesão das empresas à Conduta Empresarial Responsiva, como já visto.

Neste sentido, os Pontos de Contato Nacionais necessitam ser vistos como representantes institucionais que auxiliam na efetiva resolução de controvérsias junto à comunidade, e que, através de sua conduta mediadora, podem servir como um meio apto a viabilizar a obtenção do Licença Social para Operar, agregando valor não só para o país onde está inserido, mas também para as empresas pertencentes àquela cadeia produtiva e que se propõem a participar de acordos para mitigação de danos socioambientais decorrentes de suas atividades econômicas.

 

 

[1] Bastida, AE, 2020. The Law and Governance of Mining and Minerals: A Global Perspective. London: Hart Publishing.

[2] BRASIL. Decreto nº 11105, de 2 de junho de 2022. Dispõe sobre o grupo de Trabalho Interministerial denominado Ponto de Contato Nacional para as Diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico para as empresas multinacionais. Disponível Online.

 

 

Citação sugerida: A. S. Pereira, ‘Conduta Empresarial Responsável na regulação mineral baseada nas Diretrizes da OCDE: Um estudo comparativo entre Brasil e Austrália‘, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 17 de setembro de 2024

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