Sobre a autora: Inês Santos é licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e possui uma pós-graduação em Direito Internacional Humanitário. É consultora de Sustainable Finance na Systemic e investigadora no NOVA Centre on Business, Human Rights and the Environment, fazendo parte do Portuguese Legal Research Group on Business & Human Rights. É, ainda, embaixadora do Pacto Europeu para o Clima e da organização Unconnected.org.
A primeira Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII (1760 – 1840), foi, talvez, a revolução mais disruptiva e impactante da história da humanidade. Marcada pelo desenvolvimento dos motores a vapor e pela mecanização industrial — a chamada Indústria 1.0 –, esta revolução alavancou a evolução do conhecimento e permitiu à sociedade beneficiar de um período de grande progresso e prosperidade.
Desde então, o PIB per capita mundial cresceu exponencialmente. Observou-se, também, uma explosão demográfica sem precedentes. A população mundial aumentou de mil milhões para 7,9 mil milhões de pessoas, a esperança média de vida mais do que duplicou, e as condições de vida da população, na sua generalidade, melhoraram significativamente.
Paralelamente, a primeira Revolução Industrial desencadeou o consumo de energia fóssil, como forma de acelerar a produção. Se é verdade que o aproveitamento de recursos naturais e a queima de combustíveis fósseis sustentaram este crescimento económico sem precedentes, também é verdade que têm vindo a contribuir para um contínuo aumento da temperatura global, com subjacentes efeitos desestabilizadores para o sistema terrestre.
De acordo com dados climáticos recentes, as ações fizeram com que a temperatura média mundial tenha já aumentado cerca de 1,1º C face à era pré-industrial[1]. Caso não se observe uma diminuição drástica das emissões de gases de efeito de estufa (GEEs), isto é, caso o “business as usual” se mantenha, os cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas) alertam para a possibilidade de atingirmos um aumento de 4,4º C até 2100[2] [3], com catastróficas consequências para a natureza, pessoas, e economia mundial.
Apesar de todas as esmagadoras provas científicas, a verdade é que a inércia tem prevalecido e continuamos a investir pouco na mitigação e adaptação às alterações climáticas. Mas porquê?
Esta foi a questão que Mark Carney, ex-governador do Banco de Inglaterra, colocou. Para a responder, criou um novo conceito – a “tragédia do horizonte temporal”. Baseando-se na “tragédia dos comuns” – conceito comummente utilizado para designar situações de utilização abusiva de recursos coletivos –, a “tragédia do horizonte” pretende conceptualizar a tendência para pensarmos apenas num contexto de horizontes a curto prazo, fazendo com que tenhamos dificuldade em pensar nas ameaças que vão para além dos nossos horizontes temporais habituais. Seguindo a lógica representada por este conceito, as gerações atuais não têm incentivos diretos para agir contra as alterações climáticas, na medida em que as consequências negativas subjacentes ao aquecimento global serão mais sentidas pelas gerações futuras.
“A classic problem in environmental economics is the tragedy of the commons. The solution to it lies in property rights and supply management. Climate change is the tragedy of the Horizon. We don’t need an army of actuaries to tell us that the catastrophic impacts of climate change will be felt beyond the traditional horizons of most actors – imposing a cost on future generations that the current generation has no direct incentive to fix. That means beyond: the business cycle; the political cycle; and the horizon of technocratic authorities, like central banks, who are bound by their mandates. The horizon for monetary policy extends out to 2 years. For financial stability it is a bit longer, but typically only to the outer boundaries of the credit cycle – about a decade. In other words, once climate change becomes a defining issue for financial stability, it may already be too late”.
– Mark Carney, ex-governador do Banco de Inglaterra
Idealmente, esta solidariedade entre gerações seria alcançada apelando à nossa sensibilidade ética e moral. Contudo, considerando a urgência da ação climática, lidar com a tragédia do horizonte temporal vai exigir políticas públicas robustas, capazes de reformular os incentivos e prioridades atuais.
É essencial que se alterem, em particular, os incentivos para as instituições financeiras, que ainda estão muito orientados para a otimização do binómio risco-retorno a curto prazo. Este foco no curto prazo, ou “short-termism”, consubstancia um grande obstáculo à criação de valor social e ambiental de longo prazo. O setor financeiro desempenha, portanto, um papel-chave na resolução do problema da equidade intergeracional, na medida em que faz tanto parte do problema, como parte da solução.
Consciente da relevância da contribuição do setor financeiro para a agenda de desenvolvimento sustentável, a União Europeia tem vindo, nos últimos anos, a desenvolver um framework de finanças sustentáveis, com o intuito de promover o direcionamento dos fluxos de capital para projetos e atividades sustentáveis.
No âmbito do seu plano de Ação para as Finanças Sustentáveis[4], a Comissão Europeia (CE) publicou, em novembro de 2019, o Regulamento relativo à divulgação de informações relacionadas com a sustentabilidade no setor dos serviços financeiros – conhecido como o Regulamento SFDR (Regulamento 2019/2088[5]). Esta iniciativa classifica os fundos de investimento de acordo com as suas responsabilidades ambientais e sociais, tornando o nível de sustentabilidade dos fundos mais transparente e comparável para a comunidade de investidores.
Posteriormente, mas ainda dentro do Plano de Finanças Sustentáveis, a CE publicou, em 2020, a Taxonomia Verde[6] (Regulamento (UE) 2020/852), uma espécie de dicionário que identifica quais são as atividades economicamente sustentáveis do ponto de vista ambiental. Com a adoção desta taxonomia, a CE consagra, assim, uma linguagem comum para todos os agentes do setor financeiro, importante para combater o fenómeno do greenwashing[7].
Para além destas iniciativas, encontra-se em marcha a revisão da Non Financial Reporting Directive[8] (Diretiva NFRD). O Conselho Europeu (CE) deu, no passado dia 28 de novembro, a sua aprovação final à e proposta de Diretiva sobre o Reporte de Sustentabilidade Corporativo[9], ou Corporate Sustainability Reporting Directive (CSRD), que vem exigir às empresas a divulgação de informação não-financeira de forma mais integrada, transparente, fiável e comparável. Esta iniciativa vem, também, expandir a obrigação de divulgação de informação a um número significativamente maior de empresas, com o intuito de consagrar um quadro de reporte de sustentabilidade coerente com as restantes iniciativas europeias em matéria de Finanças Sustentáveis (Regulamento SFDR e Regulamento da Taxonomia).
Estas iniciativas constituem, assim, três peças centrais do novo framework de finanças sustentáveis da União Europeia, que ambiciona combater o “short-termism” dos mercados, e incentivar a preferência por investimentos sustentáveis face a investimentos que ignoram os impactos sociais e ambientais no curto, médio e longo prazo.
De facto, assegurar a criação de valor a longo prazo não é a preocupação default numa economia centrada no imediato, na satisfação própria, e no retorno a curto prazo. As Finanças Sustentáveis surgem, assim, na tentativa de mudar isto mesmo.
[1] https://earthobservatory.nasa.gov/world-of-change/global-temperatures
[2] De acordo com um high emissions scenario.
[3] https://www.wri.org/insights/ipcc-climate-report
[4] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52018DC0097&from=EN
[5] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32019R2088
[6] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32020R0852&from=PT
[7] O conceito de “greenwashing” é utilizado para descrever a prática de comunicar, através de alegações erradas e falsas, virtudes ambientais de produtos e/ou serviços que não se refletem na prática, com o intuito de criar uma imagem mais “verde” e atrair clientes.
[8] Diretiva 2014/95/UE, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0095&from=EL
[9] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0189
Suggested citation: I. Santos, ‘A tragédia do horizonte e o papel do setor financeiro’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 15th December 2022.
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