Sobre a autora: Odete Severino Soares é perita em direitos humanos e direitos da criança, mestrando em Direito Social e Inovação e coordenadora executiva do 1º Curso de Extensão sobre os Direitos da Criança da Nova School of Law e assume a Vice-presidência do Grupo do Conselho da UE para as Questões Socais na negociação da Recomendação da Garantia para a Infância no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE. Durante 10 anos, foi Diretora de Serviços do Departamento de Relações Internacionais e Cooperação no Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Entre 2016 e 2019, foi Vice-Presidente da Comissão Nacional para a Promoção e Proteção dos Direitos da Criança e do Jovem. Atualmente, tem uma participação pública e independente no espaço de opinião na imprensa escrita nacional sobre a área dos Direitos da criança.
A crise climática é mesmo a questão fundamental deste tempo para os jovens com menos de 18 anos. É esta a conclusão do estudo “The People Climate Vote”(1), realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em parceria com a Universidade de Oxford e divulgado no passado dia 27 de janeiro, abrangendo 1,2 milhões de entrevistados, dos quais meio milhão de jovens com menos de 18 anos, provenientes de 50 países. Trata-se da maior pesquisa global sobre o tema. Os resultados do estudo revelam que o combate à emergência climática reúne amplo apoio entre os mais jovens em todo mundo de diferentes nacionalidades, idade, género e nível educacional, exigindo aos Governos dos respetivos países a tomada de medidas urgentes.
Este é um sinal de alerta para os líderes mundiais que têm que assumir novos compromissos para enfrentar a crise climática, no próximo mês de novembro, na 26.ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP26)(2), que se realizará em Glasgow. O sucesso da iniciativa depende do grau de compromisso alcançado em relação ao artigo 6º do Acordo de Paris (3) que estabelece que os países que mais poluem deverão pagar mais pelas emissões que fazem de maneira a compensar os países que menos poluem.
Segundo o relatório da UNICEF, “Are Climate Change Policies Child-Sensitive?”, de 2019, apenas um em cada cinco dos planos nacionais dos países apresentados ao abrigo do Acordo de Paris, menciona as crianças, e mesmo assim onde estas referências ocorrem, são geralmente superficiais. Esta omissão aponta para uma falta subjacente de análise e de atenção a um segmento da sociedade que representa um terço da população mundial(4), sendo o mais afetado pela crise climática.
É do que se dá conta nos dados da Organização Mundial de Saúde que estima que, em resultado das mudanças climáticas, nas próximas décadas, aproximadamente 175 milhões de crianças serão afetadas anualmente por impactos ambientais evitáveis; que ocorrerão aproximadamente mais 95.000 mortes por ano devido à desnutrição em crianças de 5 anos ou menos até 2030; e que cerca de 24 milhões de crianças sofrerão de desnutrição até 2050(5).
Torna-se evidente que todos os direitos substantivos das crianças consagrados na Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas podem ser afetados pelas mudanças climáticas, nomeadamente, o direito à vida, à sobrevivência e desenvolvimento (artigo 6.º), não discriminação (artigo 2.º), superior interesse da criança (artigo 3.º), bem como o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre questões que lhe digam respeito e de ver essa opinião ser tomada em consideração (artigo 12.º), proteção contra todas as formas de violência (artigo 19.º), direito à saúde (artigo 24.º) e a um nível de vida adequado (artigo 27.º).
Governos, indivíduos e empresas enfrentam desafios. No entanto, quando falamos de direitos humanos, em particular, em direitos da criança, e a sua relação com as alterações climáticas somos confrontados com uma triste realidade: a informação disponível é escassa, não permitindo uma avaliação do real contributo das empresas em relação às alterações climáticas e ao impacto negativo ou positivo na proteção dos direitos da criança. Também é verdade, que esta circunstância está relacionada com o facto das empresas, de modo geral, terem um conhecimento limitado dos efeitos e das consequências potencialmente marcantes que as suas operações e cadeias de abastecimento podem ter nos direitos e nas vidas das crianças. As preocupações empresariais têm-se limitado principalmente às questões com o trabalho infantil e/ou a saúde.
No entanto, à medida que o mundo começa a ser atingido pelas alterações climáticas, escassez de água e de recursos, agravadas pelas consequências devastadoras da crise COVID-19, com impacto negativo nos grupos mais vulneráveis da sociedade, incluindo as crianças, as atividades das empresas ou das relações empresariais sob o seu controlo e ao longo da sua cadeia de valor, têm vindo a ser cada vez mais escrutinadas, exigindo-se que aquelas sejam responsabilizadas quando prejudicam – ou contribuem para prejudicar – os direitos humanos, o meio ambiente e a boa governação. Pretende-se, assim, que as empresas assumam uma conduta empresarial responsável, para evitar e/ou lidar com os impactos adversos associados às suas operações, cadeias de fornecimento e outras relações comerciais.
A época em que as iniciativas voluntárias eram a única forma de incentivar as empresas a respeitar os direitos humanos está a dar lugar ao reconhecimento de que são necessárias novas formas de regulação com força legal, onde a proteção dos direitos humanos e, em particular, os direitos das crianças, terão que ser uma prioridade, cabendo aos Governos a obrigação de assegurar a aplicação dos instrumentos e orientações internacionais existentes nesta matéria, a par de uma ação preventiva da atividade das empresas através da adoção de recomendações de dever de diligência (Due Diligence)(6) para uma conduta empresarial responsável, de forma a prevenir e a lidar com os impactos adversos relacionados com os direitos humanos, incluindo das crianças, e do meio ambiente que possam estar associados às suas operações, cadeias de fornecimento e outras relações comerciais.
Neste contexto, e de forma não exaustiva, é importante mencionar alguns instrumentos internacionais específicos em matéria da proteção dos direitos da criança para o alcance daquele objetivo, como sejam:
– os Princípios Empresariais e os Direitos da Criança definidos pela UNICEF, pelo Pacto Global das Nações Unidas e pela organização “Save the Children”, que apontam ações empresariais concretas para respeitar e proteger os direitos da criança, nomeadamente na área do ambiente (princípio 7)(7);
– o Comentário Geral n.º 16 do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, de 2013, onde se identifica um leque de obrigações estatais relativas ao impacto do setor empresarial nos direitos da criança, nomeadamente obrigação dos Estados imporem às empresas o dever de diligência em matéria de direitos da criança(8);
– o Relatório do Relator Especial sobre as obrigações em matéria de direitos humanos relativos ao gozo de um ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável (2018)(9), com enfoque na relação entre os direitos da criança e o meio ambiente, apontando para as obrigações das empresas em matéria de proteção dos direitos da criança e reconhecendo que nenhum grupo é mais vulnerável aos danos ambientais do que as crianças;
– a recente resolução 45/30(10) do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 7 de outubro 2020, onde é reconhecido o papel crítico das empresas em termos de possíveis danos ambientais e ao respetivo impacto na proteção dos direitos da criança, recomendando aos Estados uma intervenção junto das empresas, com recurso a regulamentação obrigatória através da monitorização e aplicação do dever de diligência em matéria de direitos da criança e assegurando o acesso a vias de recurso eficazes.
A par da crescente sensibilização para as responsabilidades das empresas no que diz respeito ao efeito negativo das suas cadeias de valor nos direitos humanos, temos vindo a assistir a um número cada vez maior de casos de litigação contra empresas relacionados com a violação dos direitos humanos e danos ambientais resultantes da sua atividade, como a recente decisão do Tribunal holandês em relação à empresa Shell Nigéria, ordenando a compensação aos agricultores nigerianos pelos danos causados por derrames de petróleo no delta do rio Níger. No entanto, em matéria de violação dos direitos das crianças por ação direta das empresas esta tendência crescente não se verifica, a informação continua a ser escassa, contrastando com aquela relativa aos Estados. Nos últimos cinco anos, temos vindo a assistir a um movimento crescente de jovens que reclamam uma ação urgente por parte dos Governos, junto de tribunais nacionais e internacionais, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos(11). É disso exemplo o caso apresentado por um grupo de seis crianças e jovens portugueses contra 33 países(12) (Estados Membros da UE, Reino Unido, Turquia e Ucrânia)(13).
Esta situação tem assumido importância na agenda nacional de alguns países europeus: a França e os Países Baixos já adotaram legislação para reforçar a responsabilização das empresas e introduziram quadros vinculativos em matéria de dever de diligência em matéria de direitos humanos e ambiente; mas outros Estados-Membros estão atualmente a ponderar a adoção deste tipo de legislação, nomeadamente a Alemanha, a Áustria, a Suécia, a Finlândia, a Dinamarca e o Luxemburgo.
É neste ambiente favorável que, no passado 10 de março, o Parlamento Europeu adotou um relatório(14) (504 votos a favor, 79 contra pelo e 112 abstenções)que apela à adoção urgente de uma lei vinculativa da UE que garanta que as empresas respeitam os direitos humanos e o ambiente dentro das suas cadeias de valor. Isto significa que a futura proposta visa assegurar a aplicação do dever de diligência exigindo que as empresas identifiquem, monitorizem e remedeiem o seu impacto nos direitos humanos e no ambiente ao longo da sua cadeia de valor, estabelecendo também que as regras devem ser aplicadas às empresas que operam no mercado interno da UE, incluindo as de fora da UE. Prevê ainda a aplicação de sanções por incumprimento e apoio legal às vítimas de empresas em países terceiros, assim como a proibição de importação de produtos ligados a graves violações dos direitos humanos, tais como trabalho forçado ou infantil.
Neste contexto, é de esperar que a proteção dos direitos da criança seja assumida como uma área prioritária na futura negociação da proposta legislativa que a Comissão Europeia pretende apresentar até ao final do ano, uma vez que, como vimos, os mecanismos de dever de diligência e de responsabilização das empresas concebidos sem ter as crianças em conta correm o risco de ser ineficazes na proteção dos seus direitos. Pretende-se assim uma definição de políticas de dever de diligência e de salvaguardas de gestão dos riscos, bem como da concessão de reparações efetivas nos casos onde haja violação dos direitos da criança.
Notas de rodapé:
- https://www.undp.org/content/undp/en/home/librarypage/climate-and-disaster-resilience-/The-Peoples-Climate-Vote-Results.html
- https://ukcop26.org/
- https://unfccc.int/process-and-meetings/the-paris-agreement/the-paris-agreement
- https://www.unicef.org/documents/are-climate-change-policies-child-sensitive
- World Health Organization. (2014). Quantitative risk assessment of the effects of climate change on selected causes of death, 2030s and 2050s. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/handle/10665/134014
- http://mneguidelines.oecd.org/guia-da-ocde-de-devida-diligencia-para-uma-conduta-empresarial-responsavel-2.pdf
- https://sites.unicef.org/csr/tools.html
- https://www.refworld.org/docid/51ef9cd24.html
- https://undocs.org/A/HRC/37/58
- https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G20/264/85/PDF/G2026485.pdf?OpenElement
- https://hudoc.echr.coe.int/eng#{“itemid”:[“002-13055”]}
- https://youth4climatejustice.org
- Case 39371/20
- https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2021-0073_PT.html
Citação sugerida: O. Soares “Crise Climática: O dever de diligência das empresas na proteção dos direitos das crianças”, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 25 Março 2021.
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