🇵🇹 Desmatamento e exploração do trabalho análogo ao de escravo na Floresta Amazônica: a responsabilidade das empresas brasileiras

About the authors: João Victor Palermo Gianecchini é mestrando na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP) e membro do USP Business & Human Rights Working Group.

 

 

As dinâmicas responsáveis pelo desmatamento na Amazônia passam pela ausência ou baixa consistência no desenvolvimento e maturação de práticas abolicionistas e transicionais no cenário nacional[1], que acaba por refletir na manutenção das mesmas estruturas de exploração responsáveis, por um lado, pela exploração econômica às custas do aprofundamento da destruição ambiental, e, por outro, pela vitimização de parcela da população ainda marginalizada pelo abolicionismo incompleto da escravatura no Brasil[2]. Vale dizer, a ausência histórica de práticas abolicionistas converge para a reprodução de dinâmicas autoritárias[3] de exploração do meio ambiente e da força de trabalho, que, no atual contexto, são capturadas pelas corporações em busca da incessante acumulação de capital às custas da vitimização de povos historicamente excluídos, marginalizados e vulnerabilizados.

Não por acaso, a reprodução das dinâmicas de exploração do meio ambiente pelo setor privado no Brasil expressa a convergência[4] entre o desmatamento ilegal na Floresta Amazônica pelas práticas do agronegócio brasileiro, movidos pela necessidade de criar pastos para a expansão da pecuária, extração e venda de madeira ilegal às custas da exploração do trabalho forçado, responsáveis pelo abastecimento das cadeias de produção. Também não por acaso, a maior parte das vítimas do trabalho análogo ao de escravo no Brasil (aproximadamente 70%), ou “escravidão moderna” conforme conceito empregado pela Organização das Nações Unidas, segue marcada por vítimas pretas, pardas ou indígenas[5].

O aprofundamento da exploração econômica por meio do agronegócio brasileiro segue sendo responsável pela reprodução de dinâmicas de inclusão e exclusão responsáveis por vitimizar, em maior escala, populações marginalizadas. Mais especificamente no território amazônico, o impacto das práticas do agronegócio afeta sensivelmente a sustentabilidade dos povos indígenas por meio do aumento de danos sociais e ecológicos, responsáveis pela manutenção da violência estrutural, destruindo habitats e provocando genocídio de povos indígenas e assassinatos de ativistas ambientais[6], assim como destruindo sua própria história cultural e oral[7].

Iniciativas legislativas como a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), assim como o Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012) buscaram conter o cenário de exploração e vitimização, a partir da articulação entre controle social sobre o desmatamento e promoção do desenvolvimento sustentável no território nacional. Todavia, dentre outros motivos, as dificuldades de promoção de monitoramento pelas autoridades públicas acabaram por reproduzir a grande cifra oculta relacionada à persecução e punição de infratores, fato demonstrado a partir da ampliação do arco de desmatamento da Floresta Amazônica nas últimas décadas[8], movido, principalmente, pelos interesses do agronegócio em aprofundar a exploração em detrimento da destruição do solo e vitimização da fauna e flora da Floresta Amazônica.

Mais recentemente, o aprofundamento da vitimização no contexto da exploração da Floresta Amazônica convive com o retrocesso regulatório promovido pela agenda econômica proposta pelo governo federal (2019-2022). Vale dizer, após um conjunto de medidas executivas – como medidas provisórias e decretos – a ocupação e exploração de territórios demarcados, protegidos pelo Poder Executivo brasileiro em prol da preservação da Amazônia e do livre desenvolvimento dos povos indígenas locais – acabaram por provocar uma escalada exponencial na vitimização e no impacto social e ambiental nos territórios amazônicos por meio do desenvolvimento de práticas associadas ao agronegócio[9]. Em convergência com o aumento da violência provocada pelo avanço de práticas econômicas no local, a migração da criminalidade organizada da região Sudeste brasileira ao Norte, após a abertura de espaço gerada pela desarticulação dos instrumentos regulatórios e das instituições de controle social, bem como pela saída das FARC da região amazônica após a celebração dos acordos de paz na Colômbia, contribuem para o aumento do impacto negativo sobre o bioma e povos da região[10].

Do ponto de vista ambiental, a vitimização repercute de forma a trazer consequências praticamente irreversíveis à região amazônica. Por um lado, o avanço no desmatamento[11], nas últimas décadas, contribui para o desenvolvimento do processo de “savanização”[12] do bioma amazônico, na medida em que, o que era antes floresta tropical, passa agora a se transformar em verdadeira savana. Pesquisas desenvolvidas por acadêmicos brasileiros juntamente ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) revelam que o aumento das queimadas associado à deflorestação do ecossistema são responsáveis pela aprofundamento da emissão de gases estufa na região, de modo que a Floresta Amazônica, atualmente, já não é capaz de absorver todo o gás carbônico produzido no bioma, dinâmica responsável pelo aprofundamento do aquecimento global na região[13].

Fazer o devido balanço da vitimização ambiental exige novas práticas sociais pautadas pela pesquisa científica. Uma das estratégias de pesquisa mais promissoras está no campo da vitimologia corporativa. Originalmente desenvolvido por Laufer[14], este campo é dedicado ao estudo das relações entre culpabilidade corporativa, dano e vitimização. Por sua vez, a criminologia verde do sul (Southern Green Criminology) busca analisar a reprodução dos sistemas coloniais de exploração, inclusive analisando o papel desempenhado pelas corporações no aprofundamento dos danos ecológicos e na vitimização dos povos indígenas[15]. Outra abordagem promissora reside na emergência do campo de estudos conhecido como vitimologia verde (green victimology), que se preocupa em avaliar práticas ambientais corporativas, danos e seu impacto sobre o meio ambiente (fauna e flora), bem como a vitimização humana, principalmente na perspectiva das minorias sociais[16].

A compreensão dos complexos desdobramentos contemporâneos da vitimização ambiental, bem como a necessidade de elaboração de estratégias modernas de controle social, deve passar, primeiro, pela criação de uma ferramenta conceitual útil para capturar o aprofundamento da dinâmica autoritária que se reproduz na Amazônia. Ao menos em tese, a conciliação dos fundamentos da vitimologia ambiental e a nova agenda de pesquisa em vitimologia corporativa poderia seria responsável por analisar as causas de danos sociais e econômicos e as camadas de vitimização corporativa em toda a gama de diferentes vítimas e demais stakeholders. Este deve ser um primeiro passo para a accountability corporativa por crimes e infrações ambientais no cenário atual (Laufer 2017: 415; Saad-Diniz 2019a: 139-40). Essa nova linha de investigação busca avançar o debate sobre a causalidade do dano, para além do rótulo aplicado ao conceito de crime, para novas análises empíricas sobre o comportamento corporativo, a causação do dano e os processos de vitimização dela decorrentes. É desse ponto de vista analítico que a relação interconectada entre as práticas violentas corporativas e a vitimização social, econômica e ecológica deveria ser abordada[17].

Sob o prisma regulatório, o ponto de virada no atual cenário brasileiro, marcado pela devastação da Amazônia e vitimização das populações locais, seria promover um giro regulatório (regulatory turn) das políticas públicas ambientais. O uso de dados que registrem a escalada de danos ambientais em locais precisos, incluindo informações sobre seus perpetradores e vítimas, podem oferecer subsídio a políticas públicas relacionadas à proteção dos territórios da Floresta Amazônica. Este pode ser um marco responsável por melhorar a proteção e o monitoramento das infrações ambientais no cenário nacional, bem como o ponto de partida para se estruturarem as iniciativas de reparação e restauração da devastação dos territórios amazônicos.

 

 

[1] Veja sobre, SAAD-DINIZ, Eduardo. Justiça de transição corporativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 167, a. 28, p. 71-128, 2020.

[2] Sobre essa análise, veja-se SAAD-DINIZ, Eduardo; GIANECCHINI, João Victor Palermo. Redução a condições análoga à de escravo no Brasil (art. 149, CP) e escravidão moderna. In: REALE JUNIOR, Miguel; MOURA, Maria Thereza de Assis. Coleção 80 anos do Código Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

[3] SAAD-DINIZ, Eduardo. The Idea of Corporate Transitional Justice: Paths to Corporate Criminology in Brazil. Criminal Justice Review, v. 46, n. 4, 435–449, 2021.

[4] Desenvolvemos esta análise em outra oportunidade a partir da construção da convergência entre vitimização social e ambiental. Veja-se sobre SAAD-DINIZ, Eduardo; Gianecchini, João Victor Palermo. Regulatory rollbacks in the Amazon deforestation: a nuanced look into the effects  environmental victimization, State Crime Journal , 2021, Vol. 10, No. 2 (2021), p. 257-283, 2021. Disponível em: <https://www.scienceopen.com/hosted-document?doi=10.13169/statecrime.10.2.0257>.

[5] Dados disponíveis de 2013 a 2021. Veja sobre SMARTLAB. Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas Disponível em: <https://smartlabbr.org/trabalhoescravo/localidade/0?dimensao=perfilCasosTrabalhoEscravo>.

[6] O DOCUMENTO. “Relembre casos de assassinatos de ativistas ambientais no Brasil”. Disponível em: <https://odocumento.com.br/relembre-casos-de-assassinatos-de-ativistas-ambientais-no-brasil/>.

[7] DE CARVALHO, Salo, GOYES, David Rodriguez. WEIS, Valeria. Politics and Indigenous Victimization: The Case of Brazil”, British Journal of Criminology, v. 61, n. 1, p. 251–71, 2021.

[8] INPE/Terrabrasilis. Disponível em: <http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/

legal_amazon/rates>.

[9] Sobre a análise do retrocesso regulatório e sua descrição em detalhes, veja-se SAAD-DINIZ, Eduardo; Gianecchini, João Victor Palermo. Regulatory rollbacks in the Amazon deforestation: a nuanced look into the effects  environmental victimization, State Crime Journal , 2021, v. 10, n. 2, p. 257-283, 2021. Disponível em: <https://www.scienceopen.com/hosted-document?doi=10.13169/statecrime.10.2.0257>.

[10] SAAD-DINIZ, Eduardo. “El sistema de justicia criminal en Brasil se está reduciendo a un “sistema de acuerdos” sin reconocimiento de responsabilidades”. 21.06.2022. Disponível em: <https://www.uik.eus/es/noticias/sistema-justicia-criminal-brasil-se-esta-reduciendo-un-sistema-acuerdos-sin-reconocimiento>.

[11] Disponível em: INPE/Terrabrasilis. “Deforestation Rates. Legal Amazon”. Disponível em: http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/rates>.

[12] VASCONCELOS, G.; CONCEIÇÃO, A. “Savanização da Amazônia terá custo incalculável para

economia brasileira, diz Levy”, Valor, 19.04.2021. Disponível em: https://valor.globo.com/live/

noticia/2021/04/19/savanizacao-da-amazonia-tera-custo-incalculavel-para-economia-brasileiradiz-

levy.ghtml (accessed 21 April 2021); SALES, L.P., GALETTI, M.; PIRES, M.M. Climate and Land-Use Change will Lead to a Faunal ‘Savannization’ on Tropical Rainforests. Global Change Biology, v. 26, n. 12, p. 7036–44, 2020.

[13] Sobre a pesquisa, veja-se GATT, Luciana V. Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change. Nature, v. 595, p. 388-393, 2021. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/s41586-021-03629-6?ftag=YHF4eb9d17>.

[14] LAUFER, William S. A very special regulatory milestone. University of Pennsylvania Journal of Business Law, v. 20, 2017. Campo de estudos é desenvolvido em SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimologia corporativa. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

[15] GOYES, David Rodríguez; Nariño, A. Environmental Crime in Latin America and Southern Green

Criminology. Criminology and Criminal Justice, 1–22, 2021.

[16] Flynn, M. and Hall, M. The Case for a Victimology of Nonhuman Animal Harms. Contemporary Justice Review, v. 20, n. 3, p. 299–318, 2017. De acordo com White, trata-se de nova agenda de pesquisas destinada ao “study of the social processes and institutional responses pertaining to victims of environmental crime” (White 2015: 33).

[17] Nesse sentido, veja-se SAAD-DINIZ, Eduardo. Justicia restaurativa y desastres socioambientales en Brasil. Derecho Penal y Criminología, p. 9-25, 2019.

 

Suggested citation:  J. Gianecchini, ‘Desmatamento e exploração do trabalho análogo ao de escravo na Floresta Amazônica: a responsabilidade das empresas brasileiras’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 2nd March 2023.

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