🇵🇹 Due diligence, Interseccionalidade e outras questões incontornáveis

Este blog post é baseado na intervenção de Francisco Granja de Almeida no webinar O novo contrato social: Como podemos não deixar ninguém para trás, que decorreu no dia 12 de maio de 2022 e integrou a série de webinars Sustainability Talks organizado pelo Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment.

 

Sobre o autor: Francisco Granja de Almeida é advogado, associado da VdA – Vieira de Almeida & Associados. Integra a VdA desde 2020 na área de prática de Economia Social & Direitos Humanos onde tem assessorado diversas operações do Terceiro Sector, incluindo a incorporação de diferentes ONGs e projetos sociais. No setor privado, aconselha empresas quanto ao dever de diligência devida em matéria de Direitos Humanos. É formador certificado e titular de um LL.m pela Universidade de Utrecht.

 

 

A pandemia veio funcionar como uma lupa por cima das desigualdades sociais que já existiam. Portanto, veio acelerar, veio demonstrar e trazer à tona da água, como se costuma dizer, todo um tecido social, que não é igual e que tem profundas desigualdades e pôr a ferida à mostra. Foi isso que pandemia fez. Costuma-se dizer, e bem, que a pandemia afetou toda a gente, mas afetou mais uns do que outros. E eu estou absolutamente de acordo com essa postura em relação à pandemia, que acho que é muito útil.

 

Do ponto de vista das empresas, a aceleração digital tornou se a palavra do dia. A pandemia veio obrigar as empresas a adaptar a forma como trabalham e como comunicam e colocar o foco nos serviços digitais. Isto teve impactos positivos. Desde logo, como nós nos lembramos, no início da pandemia, fazíamos conferências com pessoas de todo o mundo, que antigamente seriam só nas nossas cidades. Por exemplo, em Portugal há uma centralização em demasia, pejorativa a meu ver, de eventos e serviços na cidade de Lisboa. As pessoas no poder concentram se demasiado em Lisboa e no Porto. Por isso, este é um aspeto positivo, que permitiu uma verdadeira inclusão territorial. Por outro lado, a verdade é que criou uma vulnerabilidade muito grande à qualidade de vida dos trabalhadores. Portanto, eu diria que neste período pós pandémico as duas ideias principais são: transformação digital e foco nos colaboradores. Porque a pandemia vem demostrar que a nossa saúde, afinal, não está assim tão garantida como se pensava, principalmente nos países ditos desenvolvidos. Veio demonstrar que não só a saúde física como a saúde mental são prioridades das empresas. E acho que isso foi um impacto positivo da pandemia. A pandemia foi uma tragédia humana, mas, na verdade, desta tragédia humana, que devastou todos e todas de forma desigual, veio este foco na saúde mental e na saúde física dos colaboradores, que é de louvar.

 

No período pós pandémico, a diferença entre vida familiar e pessoal e a vida profissional que adveio de estarmos a trabalhar de casa durante a pandemia, o que foi muito pejorativo para muitas pessoas, vai ser basilar: colmatar essa falta de balanço entre a família, o lazer e o trabalho que foi completamente devassada durante a pandemia e, de facto, voltar a pôr os direitos dos trabalhadores de forma nova e de forma eficaz e atualizada na agenda. Claro que há outros desafios que são jurídicos e funcionais ao mesmo tempo, como se as empresas devem ou não suportar custos, devem ou não continuar a pagar o subsídio de alimentação bem como o direito à desconexão.

 

Parece lhe que a redefinição do contrato social implica a redefinição dos princípios de diligência devida?

 

Parece me que sim.  Se calhar eu quero fazer uma pausa para falar um bocadinho do contrato social, porque podemos não estar todos no mesmo pé. Não sou propriamente um filósofo do direito e também não irei falar de Hoobes, de Locke, de Rousseau e do Leviatã, porque acho que não é necessário. Mas esta ideia que, a meu ver, o contrato social foi efetivamente reforçado e foi tornado mais exigente com a pandemia – porque quando estamos a pensar em contrato social estamos a pensar naquela ideia fundamental de que para vivermos em paz, numa comunidade, numa sociedade organizada, aceitamos a limitação de alguns dos nossos direitos, respeitamos ordens e cumprimos regras a favor de um Estado que, por sua vez, devolve a manutenção da ordem pública, a segurança social, a integridade territorial – estamos a pensar neste sinalagma entre o indivíduo e o Estado, que, por isso, se chama contrato social. A meu ver, esse contrato social foi só tornado mais exigente. As pessoas foram impedidas de estar com as suas famílias, de sair à rua, foram impedidas de ir ao templo rezar e orar. Razão pela qual, se o Estado reprimiu tanto, as pessoas agora querem muito do Estado. Portanto, perante esta mão que tira eu acho que, de facto, o contrato social foi só reforçado.

 

Se a redefinição deste contrato social implica a redefinição dos princípios de due diligence? Eu acho que sim. Se as pessoas começaram a exigir mais do Estado, a sua postura para com a autoridade e entidade empregadora também é de exigência maior, porque, de facto, houve uma alteração fulcral do enquadramento. E, por outro lado, este sentido da due diligence está a ser cada vez mais aumentado pela União Europeia. Do ponto de vista jurídico, ainda há pouco tempo soubemos da última proposta de Diretiva de Due Diligence em matéria de direitos humanos e ambiente. Sabemos que no contexto regulatório, o chamado “tsunami europeu”, está a caminhar para aprofundar as estas regras. Portanto, reparem como me parece que está a ir tudo num sentido vetorial positivo. Estamos de facto a obrigar as empresas a ter mais regras e a cumprir. E eu acho que o ponto fulcral desta postura é que as empresas que se adiantarem vão ser as empresas que vão liderar. Ou seja, de facto, a redefinição deste contrato social implicou uma redefinição de princípios de due diligence e as empresas que avançarem serão aquelas que estarão à frente do mercado. É uma situação de win-win, porque, por um lado, estão à frente do mercado e, por outro, estão a contribuir para uma transição justa.

 

Também creio que o processo de diligência devida deve ser customizado às vulnerabilidades específicas de cada grupo. Não é novidade, as Nações Unidas fazem isto há algum tempo. O Working Group on Business and Human Rights tem diretivas específicas para os impactos nocivos que algumas empresas podem ter nos direitos das mulheres e raparigas. Pensem, por exemplo, que em muitas sociedades do mundo, do ponto de vista da sociedade, de um ponto de vista antropológico, são as mulheres e as raparigas que caminham para ir buscar água potável. Ora, se uma empresa polui o curso de um rio, são as mulheres e raparigas que têm de caminhar mais para recolher água potável e por isso estão mais vulneráveis a ataques e longe da escola. É esta lógica que é preciso, de facto, ter em consideração. A especial vulnerabilidade é uma lógica que está intimamente ligada ao contrato social e é uma lógica que não pode ficar presa numa espécie de ciclo teórico de impacto social. Esta também é a postura do legislador. A verdade é que na expansão ESG, as dimensões ambientais, sociais e de boa governança estão cada vez mais a ser reguladas em conjunto. Portanto, esta perspetiva de direitos humanos de um lado, ambiente de outro, boa governança do outro, já não é tão assim. O legislador europeu, principalmente, tem pensado de forma transversal à sustentabilidade e as empresas devem estar prontas para isso, para um processo de diligencia devida que implica impactos nos direitos humanos e no ambiente, conjuntamente.

 

Quais os tópicos a não esquecer no contexto do novo contrato social, ou seja, o que é que lhe parece mais importante no contexto deste novo contrato social?

 

Já falei há pouco sobre o que acredito ser uma maior exigência do contrato social depois da pandemia. E como se não tivesse bastado uma pandemia, temos agora uma guerra que é outra externalidade que está a pôr na ordem do dia a ação do Estado e o Direito humanitário, o Direito de Guerra. Por isso, temos uma espécie de conjuntura perfeita, infelizmente, para repensar o papel do Estado nas nossas vidas e perceber que, de facto, este contrato tem sido reforçado.

 

Relativamente a tópicos principais, falamos muito hoje do interseccionalidade. Por isso eu acho que a interseccionalidade é uma forma, uma moldura analítica, que está completamente na ordem do dia e que cresce a discussão. Portanto, se calhar eu aproveitava, e com a grande possibilidade de dizer algo menos perfeito, fazia uma explicação muito breve do que é interseccionalidade também para estarmos todos na mesma página. A teoria da interseccionalidade foi desenvolvida por uma professora de Direito chamada Kimberlé Crenshaw, nos Estados Unidos da América, precisamente a estudar leis antidiscriminação. Portanto, a professora Kimberlé Crenshaw apercebeu-se que havia leis antidiscriminação de pessoas negras nos Estados Unidos refletiam maioritariamente a experiência masculina. Portanto, as leis estavam pensadas para o homem negro e deixavam como uma lacuna a especificidade das vulnerabilidades da mulher negra. Em suma, as leis contra a discriminação nos Estados Unidos da América, que viu atrocidades sociais de segregação racial, estavam pensadas para a experiência masculina. Por outro lado, as leis antidiscriminação de género estavam pensadas para as mulheres brancas. Portanto, a postura legislativa que foi posta em vigor para batalhar a discriminação do género não estava pensada, nem construída, nem foi escrita por mulheres negras nem para mulheres negras. Baseava-se muito numa postura cosmopolita da vivência da mulher branca da altura. O que esta professora veio arguir é que, de facto, a discriminação funciona de forma interseccional. Quer dizer uma mulher negra sofre de mais violência, está mais vulnerável à violência do que uma mulher branca. Os grupos, as vulnerabilidades intercetam-se. Isto é só uma nota histórica de como é que isto começou a ser estudado, foi nesta legislação contrarracismo que pensava só nos homens negros e contra a discriminação de género, que pensava só nas mulheres brancas, deixando um hiato que era a chamada pessoa mais vulnerável do mundo, a mulher negra na América. Este parece-me um dos tópicos inultrapassáveis do novo contrato social. A discriminação funciona de forma interseccional.

 

O outro é, de facto, o papel das empresas. Portanto, este novo contrato social pede muito mais atividade, muito mais ação das empresas do que pedia ao restante. Aquela ideia de que a ordem pública, o desenvolvimento sustentável com respeito pelos direitos humanos, é uma responsabilidade só do Estado é uma ideia completamente ultrapassada. Já falámos aqui dos princípios orientadores das Nações Unidas para as empresas em matéria de direitos humanos, que de facto estabeleceram que as empresas têm uma responsabilidade de proteger direitos humanos. Portanto, se as empresas têm uma responsabilidade de proteger os direitos humanos e se os direitos humanos são garantias jurídicas e universais de proteção da dignidade, então a empresa faz parte do contrato social e faz principalmente mais parte deste novo contrato social que está assente nas profundas desigualdades, desde logo de distribuição da riqueza – que se viram nos últimos anos continua a concentrar-se em 1% da população. Ora, o que é que isso quer dizer? Quer dizer que um dos outros tópicos a não esquecer, na minha perspetiva, é o papel das empresas. As empresas devem comportar se como cidadãs responsáveis na sua ação comunitária e devem fazer isto três formas. Primeiro, devem evitar causar danos. Portanto, o princípio Do No Harm, muito relacionado com o processo de diligência devida que falámos há pouco. Diligencia devida para juristas é muito fácil, para não juristas pode ser um bocadinho mais complicado. A ideia está assente num conceito, cujo nome não me agrada particularmente, que é bonus pater familias. Desde logo, porque não é inclusivo – hoje em dia também podia ser bonus mater famílias – que é a ideia de que as empresas devem agir com o máximo de diligência possível num determinado local e num determinado tempo, devem fazer tudo o que tiverem ao seu alcance para não causar danos. Do outro lado, está aumentar o impacto positivo na comunidade e no ambiente. Isto é, não só eu não quero causar danos, eu empresa, eu quero contribuir positivamente para a comunidade e para o planeta e para a economia. Portanto, quando falamos desta contribuição, estamos muito a falar na responsabilidade social corporativa. Portanto, é importante não confundir processo de due diligence com responsabilidade social corporativa. A responsabilidade social corporativa está pensada, a externa, para aumentar o valor social na comunidade: “a minha empresa vai plantar árvores; a minha empresa vai fazer uma campanha de cabazes para entregar a uma ONG”. Isto é responsabilidade social corporativa que não tem nada a ver com implementar políticas de direitos humanos para garantir que as minhas operações não estão a violar os direitos das comunidades mais vulneráveis. São coisas completamente diferentes. Uma coisa é mitigar riscos, outra coisa é aumentar o impacto. E era assim nesta dupla postura que eu diria que, de facto, se devem encarar as verdadeiras cidadãs responsáveis que devem ser as empresas neste novo contrato social. Estes seriam os tópicos.

 

Citação Sugerida: F. G. de Almeida, ‘Due diligence, Interseccionalidade e outras questões incontornáveis’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 02nd September 2022

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