Catia Marques Barbosa & Madalena Simoes

🇵🇹 Educação para os direitos humanos e o direito das crianças a serem ouvidas pelo sector público e privado

About the authors: Cátia Marques Barbosa concluiu a sua licenciatura em Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Atualmente, está no 2.°ano do Programa de Desenvolvimento de Liderança da Teach For Portugal, como mentora pedagógica numa escola. Desde cedo, manifestou interesse na área de proteção de menores e no empoderamento das crianças. Criou com os seus alunos dois projetos comunitários, “Animal sem código postal” e “Planeta per tutti”, nos quais procura conciliar o treino de competências socioemocionais e o ativismo juvenil.

Madalena Simões é Research Assistant no NOVA Centre on Business, Human Rights and the Environment. É licenciada em Direito pela Universidade Nova de Lisboa e está atualmente a estudar Direito Internacional Público (LL.M) na Universidade de Leiden.

 

Nelson Mandela descreve-a como a arma mais poderosa para mudar o mundo e Malala Yousafzai, reforçando o poder da educação, simboliza-a sob a forma de “One child, one teacher, one book and one pen”. Sob a educação recai um árduo trabalho, pois esta consiste em simultâneo num direito universal, per se, bem como se torna inegável o seu papel enquanto ferramenta basilar para a promoção e cumprimento de todos os direitos humanos (Grover, 2002).

O seu propósito não se restringe ao conteúdo que o aluno poderá ou não utilizar na sua vida profissional futura mas é, antes de mais, a condição fundamental para que o ser humano esteja munido de ferramentas cognitivas que lhe permitam olhar para si, para os outros e para o mundo, com uma postura de compreensão, tolerância e solidariedade. Ao potenciar o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo, tornam-se evidentes situações que violam os direitos humanos. A educação possibilita quebrar barreiras que a ignorância cria sob a forma de estigmas e preconceitos. Assim, assume-se como a promotora de uma sociedade mais justa e tolerante, que são por si mesmas condições para a manutenção da paz.

Por acreditar no poder transformacional que esta permite, há cerca de um ano, juntei-me à ONG Teach For Portugal. Esta organização tem como missão garantir que todas as crianças têm acesso a uma educação que lhes permita atingir o seu potencial máximo, independentemente   do   seu   enquadramento socioeconómico. Para isso, recruta profissionais promissores de várias áreas para trabalharem em escolas que servem comunidades vulneráveis com o objetivo de desenvolver   nos   alunos   as   competências   socioemocionais   e   os   resultados académicos capazes de os colocar num caminho de maiores oportunidades.  O que une estes mentores é um forte sentido de compromisso com a mudança sistémica   e   com   as   comunidades   educativas   onde   atuam.  A premissa é a educação enquanto caminho para a promoção de uma sociedade mais justa e equitativa.

Enquanto Mentores Teach For Portugal, a promoção dos direitos humanos é realizada essencialmente a dois níveis: direto e indireto.

Educar para os direitos, ao nível direto passa por dar a conhecer os direitos aos alunos, explorar os artigos e desconstruir as palavras ao nível da compreensão individual. Significa observar, pesquisar e debater sobre como esses direitos se concretizam ou não na sua comunidade e no dia a dia do aluno.

É fundamental que a criança, à semelhança de qualquer adulto, conheça os seus direitos para que possa atuar em prol da sua defesa. Bem como, ser capaz de refletir sobre os limites que os mesmos têm, com vista ao respeito e tolerância de todos.

Em simultâneo, torna-se extremamente rico, trazer exemplos de personalidades históricas defensoras dos direitos humanos e criar espaço para que a criança possa transpor esse conhecimento de forma criativa. Um exemplo, foi um diálogo entre Gandhi e Martin Luther King, criado e personificado por duas alunas de 10 anos. Hoje toda a turma conhece as histórias e causas por trás destes nomes  e acima de tudo, desenvolveu   maior   consciência   cívica. Diariamente, através de pequenas ações e palavras percecionamos o impacto que essa aprendizagem teve em cada aluno, ao escutar frases como “eu fiz como a Rosa Parks, não era justo e eu falei” ou questões reflexivas como “se eu for a um país muçulmano e estiverem a fazer o Ramadão, vou faltar ao respeito se comer?”. Afinal   de   contas, o   pensamento   crítico   faz-se   deste   constante questionamento sobre o próprio pensamento e realidade envolvente.

Num nível indireto, a educação para os direitos passa pela promoção de competências que permita aos alunos atingirem o seu máximo potencial e agir como cidadãos empoderados em prol de um bem-comum e no combate à injustiça.

Para que o aluno seja capaz de liderar a mudança, e atuar como agente promotor dos direitos humanos, antes de mais deve passar por um processo de autoconhecimento.  Enquanto mentores Teach For Portugal, cabe-nos orientar este processo de descoberta e passarmos nós mesmos por este. É fundamental que   o   aluno   reflita   sobre   as   suas   potencialidades   pessoais   como   meios   que utilizará na defesa desses mesmos direitos.  Em suma: como poderei eu liderar a mudança se não me sentir capaz de me liderar a mim mesmo?

No trabalho diário com as crianças é vital o respeito pela sua identidade, seja ao nível cultural, social, linguístico ou de valores. Não só como forma de integração e promoção   do   respeito, tolerância   e   curiosidade   pela   diversidade, mas   também   como   um   elemento   facilitador   do   próprio   processo   de aprendizagem. Este cuidado é tido quer no momento de planeamento da aula, conjuntamente com o/a docente; quer através da inclusão de dinâmicas sobre a identidade, como também na vontade constante de querer conhecer a criança e a sua história de vida. É fundamental que o aluno se sinta visto e compreendido na   sua   individualidade, “antes   de   ser   um   aluno, é um   ser   humano”, com potencialidades e fraquezas, que existem para além dos muros da escola.

Para além do reconhecimento por parte do aluno dos seus próprios direitos, é fundamental fomentar o pensamento crítico. O mentor procura orientar o aluno, para que este reflita sobre a sua história de vida e a sua visão sobre o mundo. Ou seja, sobre como a sua identidade, crenças e valores influenciam a forma como lê e interage com os outros. E por último, como o seu “eu” se situa no   ciclo   de   opressão   e   libertação.   Ainda   que   possa   ser   desafiante   fazer   este exercício   de   reflexão, a consciência dos privilégios individuais   e   dos momentos   em   que   atuamos   como   agentes   de   opressão, ainda   que   não intencionalmente, torna-se   fundamental   para   o   cumprimento   dos   Direitos Humanos. Assim, o mentor procura promover aquilo a que Paulo Freire chama de “pedagogia libertadora”. Não se pretende dizer ao aluno que algo está certo ou errado, mas sim, promover uma visão disruptiva, através da qual os alunos consigam discernir sobre as suas tradições culturais, sistema de valores e se os mesmos são condizentes com a dignidade humana.

A educação para os direitos passa também por promover a consciência sobre o outro.  A   empatia   assume-se   como   um   gatilho   promotor   da aprendizagem, ao permitir abertura para o outro e ao tornar o que é diferente em algo   que   eu   quero   cuidar   e   sobre   o   qual   tenho   curiosidade   em   conhecer. Consequentemente, contribui para um melhor entendimento da realidade e das peculiaridades do outro, evitando desta forma, discriminações e preconceitos.

Com vista à promoção dos direitos humanos, o mentor procura implementar uma pedagogia culturalmente responsável. Ao planear uma aula é importante considerar temáticas, exemplos e imagens, que respeitem a identidade dos alunos   e   com as   quais estes se identifiquem.  Neste sentido, assume especial importância a representatividade e a necessidade de a individualidade do aluno ser   integrada   na   escola.   Por   exemplo, se   falarmos   de   racismo, não   nos poderíamos cingir ao conceito plasmado no dicionário, nem a uma única visão sobre o   seu enquadramento   histórico.  É   crucial, olhar   para o   fenómeno como um iceberg consagrando distintas camadas e a necessidade de olharmos para   ele   segundo   vários ângulos, momentos   e   lentes.   Devemos   procurar entender   e   explorar   com   os   alunos   o   que   significa   e   como   se   vivencia   este fenómeno na sua comunidade e segundo a sua lente. Que formas ele assume, como se enquadra na história de vida do aluno e como a mesma problemática é sentida pelos diferentes agentes.

Por outro lado, o mentor procura promover junto dos alunos, o sentido de compromisso social para   com   a   comunidade   para   o   exercício   de   direitos. Através de projetos de liderança e ativismo, os   alunos e comunidade podem trabalhar   colaborativamente, reforçando   vínculos   e   empoderando   todos, enquanto cidadãos ativos e agentes de mudança na sua comunidade.

A educação para   os   direitos passa   também   pelo   cultivo   de   uma mentalidade de crescimento e pelo exemplo. É crucial que o aluno tenha um modelo, cujos   valores, atitudes   e   comportamentos   são   condizentes   com   o respeito pela diversidade e pela dignidade humana, exemplo que os mentores procuram ser.

Desta forma, é alcançada uma visão mais rica e construtiva, com “tomada de   perspetiva” e   potenciando   o   pensamento   crítico.   O   jovem   estará mais capacitado   e   consciente   para   se   posicionar   enquanto   agente   de   libertação, defendendo o cumprimento dos seus direitos, bem como agir enquanto aliado contra a indiferença perante situações de violação dos direitos dos outros.

 

O direito das crianças a serem ouvidas pelo sector público e privado

A educação para os direitos permite efetivar o art. 12.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, que consagra o direito da criança a exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe dizem respeito e de ver a sua opinião tomada em consideração. De facto, quanto mais capacitada e consciente for a criança, maior será o seu contributo em processos de participação e a sua participação efetiva.

Na educação para os direitos, é fundamental que, para além de promover o conhecimento dos jovens sobre os seus direitos e de potenciar a sua capacidade de os exercer e defender, sejam criados espaços e oportunidades para que os mesmos sejam ouvidos. Além do sector público, o sector privado tem um importante papel a desempenhar. Por essa razão, não só as escolas, mas também as empresas devem ouvir as crianças.

Nas escolas, é crucial que os jovens tenham espaços seguros para expressar aquilo que pensam e sentem, bem como ser encarados como agentes ativos de mudança, com a oportunidade e capacidade de influenciar a tomada de decisão, em questões que lhes dizem respeito.

No que toca ao papel das empresas, também elas são agentes cuja atividade e decisões têm impacto na vida das crianças e podem ser agentes de mudança na construção de uma sociedade mais justa, em que os Direitos das Crianças são assegurados. Como aponta o Children’s Rights and Business Principles: “As crianças estão entre os membros mais marginalizados e vulneráveis da sociedade e isto é evidente pela sua falta de voz pública. Raramente têm uma palavra a dizer ou são consultadas sobre a forma como as comunidades tomam decisões – mesmo decisões que as afetam diretamente, tais como o planeamento de escolas e áreas recreativas. No entanto, quando lhes é dada a oportunidade de participar, as crianças têm demonstrado que podem fornecer pontos de vista alternativos importantes e dar contributos valiosos” (p. 2).

Como reconhecido no Children’s Rights and Business Principles, as crianças e jovens são ‘consumidores, membros da família de trabalhadores, trabalhadores jovens, bem como futuros empregados e líderes empresariais’ são ainda ‘membros chave das comunidades e contextos em que as empresas operam’. Por essa razão, as empresas devem ouvir as crianças, quer diretamente, quer por intermédio de stakeholders, de forma que conheçam os impactos reais ou potenciais das suas operações nos direitos das crianças. Neste processo de consulta das crianças, é fundamental que as empresas se orientem por instrumentos como o Business and Children’s Participation (Save the Children, 2015) e o Engaging Stakeholders on Children’s Rights (UNICEF, 2014), que servem como um guia de como as empresas podem criar oportunidades de participação para as crianças.

O Children’s Rights and Business Principles determina que o respeito pelos direitos das crianças é o mínimo exigido às empresas. Cada Princípio estabelece ações que devem ser implementadas pelas empresas para que este respeito seja efetivado, bem como ações de apoio aos direitos da criança. Os Princípios evidenciam que conduta das empresas têm um impacto direito nos direitos das crianças, impacto esse que vai além do trabalho infantil e abrange as suas operações a nível global, nomeadamente os seus produtos e serviços, os seus métodos de marketing e práticas de distribuição; bem como as suas parceiras com governos nacionais e locais, e investimentos em comunidades locais.

Garantir os Direitos das Crianças é responsabilidade, que não se restringe exclusivamente à esfera individual mas, é sim uma responsabilidade que deverá ser assumida e partilhada quer pelo sector público como privado. Apenas através de um esforço conjunto se poderá caminhar para um efetivo cumprimento desses mesmos direitos.

 

 

Suggested citation:  C. Barbosa e M. Simões ‘Educação para os direitos humanos e o direito das crianças a serem ouvidas pelo sector público e privado’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 6th March 2023.

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