🇵🇹 O caso Shell Nigéria

Sobre as autoras:

Ana Duarte é aluna do Mestrado em Direito e Gestão da NOVA School of Law. É licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e frequentou uma Pós-Graduação Avançada em Direito Societário. Desde 2020 que faz parte da equipa de Projectos Educativos da HeForShe Lisboa e tem vindo a trabalhar em projectos relacionados com a igualdade de género, como “WeForEducation” e “Mentoring The Future”. Para além disto, a Ana tem como principais áreas de interesse as áreas de Responsabilidade Social das Empresas e Finanças Empresariais Sustentáveis.

Rafaela Oliveira é licenciada em direiro pela Universidade de Lisboa e é atualmente aluna no mestrado em Direito e Gestão na NOVA School of Law. Ser membro do grupo da Amnistia Internacional na sua escola secundária conferiu-lhe perspetiva acerca dos problemas de Direiros Humanos. As suas áreas de interesse são Direiros Humanos, Sustentabilidade e como combinar os dois no mundo do negócio

 

 

“Finalmente, alguma justiça”

Após treze anos de batalha judicial, o Tribunal holandês ordenou a empresa Shell Nigéria a compensar os agricultores nigerianos pelos danos causados por derrames de petróleo no delta do rio Níger.

 

Os incidentes

O processo foi desencadeado por quatro agricultores e pescadores nigerianos que viram as suas vidas afetadas pelos derrames. O delta do rio Níger é central na subsistência das populações locais uma vez que lhes concede comida, trabalho e até um local onde tomar banho. Ao longo dos anos, e após vários derrames, a poluição afetou a vida das populações locais e destruiu o meio ambiente envolvente.

Em 2004, ocorreu um derrame de petróleo perto da aldeia de Goi, contaminando uma área com o tamanho de cinquenta campos de futebol. Uma segunda fuga em 2005, perto da aldeia de Oruma, contaminou uma área do tamanho de dez campos de futebol. Deflagrou ainda um incêndio que, segundo os agricultores, destruiu culturas e tornou a terra imprópria para o cultivo. Os vazamentos ocorreram em condutas subterrâneas operadas pela Shell Petroleum Development Company of Nigeria (‘SPDC’ em diante), uma subsidiária da Royal Dutch Shell (‘RDS’ em diante).

Foi após estes desastres, em 2008, que os quatro nigerianos se aliaram à organização não governamental holandesa Milieudefensie instaurando, separadamente, quatro ações civis. Os requerentes alegaram que os danos se deviam a atos ilícitos e negligência, tanto da subsidiária nigeriana, como da empresa-mãe localizada na Holanda. Pediam compensação pelos prejuízos causados pelo derrame. Exigiam, ainda, que o solo e a água fossem limpos de poluição e que houvesse esforços para prevenir possíveis vazamentos futuros. A Shell alegou que a causa dos derrames foi sabotagem, excluindo assim qualquer responsabilidade. O processo contra a empresa-mãe foi submetido ao abrigo do Regulamento Bruxelas I Reformulado enquanto que, contra a subsidiária SPDC, as ações foram apresentadas nos termos dos artigo 7(1) do Código de Processo Civil holandês, que permite que as reivindicações, sendo relacionadas, sejam julgadas perante o mesmo tribunal.

 

As decisões anteriores

Nas primeiras decisões, em 2013, o Tribunal Distrital de Haia, rejeitou o caso das aldeias de Goi e Oruma, e apenas as reivindicações da aldeia Ikot Ada Udo procederam, uma vez que o tribunal considerou que a sabotagem poderia ter sido facilmente prevenida (1). Contudo, qualquer responsabilidade da empresa-mãe, RDS, foi indeferida uma vez que, de acordo com a lei nigeriana (legislação aplicável pela Regulação Roma II enquanto lei do local onde o dano ocorreu), não existe qualquer dever de cuidado das empresas-mãe de modo a evitar que as suas filiais provoquem danos a terceiros através das suas atividades comerciais (2). Ambas as partes recorreram.

Na segunda decisão, em dezembro de 2015, o tribunal de recurso de Haia, declarou os tribunais holandeses competentes para julgar os processos em questão. Para além disso, o tribunal afirmou que “não se pode excluir antecipadamente que uma empresa-mãe possa, em determinadas circunstâncias, ser responsabilizada por danos resultantes de atos ou omissões de uma (sub)subsidiária”(3)  (tradução livre do autor). Apesar da decisão ser apenas sobre jurisdição, o tribunal afirmou, também, que não se pode excluir, à partida, que haja um dever de cuidado (“duty of care”) da empresa-mãe em relação às comunidades afetadas pelas ações das suas subsidiárias, principalmente quando esta fez da prevenção ambiental um dos motes da atividade do grupo empresarial e está, até certo ponto, ativamente envolvida na gestão das suas subsidiárias (4). Destas decisões preliminares resultou, ainda, que a Lei holandesa seria aplicada aos aspetos processuais dos casos, enquanto que a Lei nigeriana seria aplicada aos aspetos substantivos. Contudo, o tribunal afirmou que, uma vez que a lei nigeriana, enquanto sistema de Common Law, é baseado no direito inglês, tanto o direito comum como a jurisprudência inglesa seriam fontes relevantes para ter em consideração.

 

As respostas finais

No passado dia 29 de janeiro, o Tribunal de Recurso de Haia procedeu a decisões verdadeiramente históricas.

Nos casos Oguru e Efanga contra SPDC e Royal Dutch Shell (Oruma) e Dooh contra SPDC e Royal Dutch Shell (Goi), o Tribunal de Recurso discordou com o entendimento do Tribunal Distrital, quanto à fuga ter ocorrido devido a sabotagem e quanto à SPDC ter impedido a fuga assim que era razoavelmente possível. A subsidiária nigeriana foi considerada responsável pelo derrame de petróleo, pois recaía sobre a petrolífera o ónus de provar, para além de qualquer dúvida razoável (Secção 135 da Lei Nigeriana de Provas de 2011), que os derrames efetivamente se deveram à sabotagem dos oleodutos e tal não ocorreu. No entanto, o Tribunal não considerou que a RDS tivesse um dever de cuidado (“duty of care”) pelos derrames, visto a SPDC incorreu em responsabilidade objetiva, ou seja, sem culpa. Relativamente à resposta à fuga, no primeiro caso o Tribunal considerou a SPDC negligente e por isso responsável, por não ter um sistema de deteção de fugas como deveria ter. A este respeito a RDS foi considerada responsável por violação do dever de cuidado (“duty of care”) que tinha para com os habitantes daquela localidade. Esse dever surge da proximidade da empresa-mãe com os agricultores, devido às diversas intervenções que realizou na SPDC. Desta forma, a RDS foi condenada a assegurar a construção de um sistema de alerta melhor, no oleoduto de Oruma, para que futuras fugas possam ser detetadas atempadamente. No segundo caso, considerou-se que a SPDC tinha um dever de cuidado (“duty of care”) para com as pessoas da área afetada pelo derrame e um dever de cuidado de encerrar o fornecimento de petróleo no dia da fuga. Neste caso, o tribunal não considerou a RDS responsável, pois esta não tinha sido informada da situação, também não foi obrigada a construir um sistema de alerta de fuga, já que este tinha sido colocado em 2019. Nos dois casos os pedidos de reparação adicional foram indeferidos e uma das questões que ficou por demonstrar foi a limpeza insuficiente, realizada pela subsidiária, ao solo das respetivas zonas de Oruma e Goi, no entanto, este poderá ser um aspeto a considerar no procedimento que avaliará os danos causados. É ainda de salientar que o montante da indemnização será ainda determinado num procedimento de avaliação de danos.

Finalmente, no caso SPDC contra Akpan (Ikot Ada Udo) o Tribunal de Recurso concordou com a decisão do Tribunal Distrital, que tinha concluído a fuga tinha sido causada por sabotagem e, por isso negou provimento ao recurso. No entanto, a questão da responsabilidade da SPDC continua por decidir, pois o Tribunal pretende primeiro estabelecer para onde se propagou a poluição e se esta ainda necessita de ser limpa.

Estas decisões tornam-se, assim, importantes marcos para futuros casos que envolvam questões ambientais. É também surpreendente como, pela primeira vez, foi estabelecido que existia um dever de cuidado (“duty of care”) da empresa-mãe para com os autores e, desta forma esta foi considerada responsável pelas falhas da sua subsidiária. Passados treze anos de luta pelos seus direitos, estes agricultores e os seus familiares puderam ver os seus direitos a serem atendidos e respeitados. Infelizmente, para alguns, estas decisões vieram tarde demais, pois faleceram no decorrer dos processos, mas resta a esperança de que a sua coragem, ousadia e determinação não tenha sido em vão.

 

 

Referências:

Bernaz, N. (2021, Fevereiro). Wading through the (polluted) mud: the Hague Court of Appeals rules on Shell in Nigeria. Disponível em: <https://rightsasusual.com/?p=1388>

Bright, C. (2019). The Civil Liability of the Parent Company for the Acts or Omissions of Its Subsidiary: In A. Bonfanti, Business and Human Rights in Europe (pp. 212-222). Routledge.

Corder, M. (2021, Janeiro). Dutch court orders Shell Nigeria to compensate farmers. Disponível: <https://apnews.com/article/business-netherlands-nigeria-the-hague-pollution-df365847d4cf6bf2a1fcd1b94d1cbf2e>

de Rechtspraak (2021, Janeiro). Shell Nigeria liable for oil spills in Nigeria. Disponível em: <https://www.rechtspraak.nl/Organisatie-en-contact/Organisatie/Gerechtshoven/Gerechtshof-Den-Haag/Nieuws/Paginas/Shell-Nigeria-liable-for-oil-spills-in-Nigeria.aspx>

van Dam, C. (2021, Fevereiro). Shell liable for oil spills in Niger Delta. Disponível em: <https://www.linkedin.com/pulse/shell-liable-oil-spills-niger-delta-cees-van-dam/?trackingId=Q3dm7pUAT%2FS3jTCpX73%2F5g%3D%3D>

 

 

Notas de rodapé:

  1. District Court of The Hague, Akpan v. Royal Dutch Shell Plc et al., C/09/337050 / HA ZA 09-1580, January 30, 2013, para. 4.26
  2. Ibidem, para. 4.26
  3. Court of Appeal of the Hague, Eric Barizaa Dooh of Goi and others v. Royal Dutch Shell Plc and Others, para, 3.2.
  4. Ibidem, para, 3.2.

 

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Citação sugerida: A. Duarte, e R. Oliveira “O caso Shell Nigéria”, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 07 Fevereiro 2021.

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