🇵🇹 Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas em matéria de Sustentabilidade: É o fim do início?

Sobre a autora: Ana Santos Duarte é advogada e consultora especializada em Business & Human Rights. Ao longo do seu percurso profissional prestou assessoria jurídica a empresas, em matérias de Business & Human Rights, e a entidades do terceiro setor. Participa ativamente em projetos de investigação, colabora com diversos stakeholders, realiza formações e elabora artigos e newsletters sobre desenvolvimentos legais e jurisprudenciais na área de ESG/Business & Human Rights. Ana é pós-graduada em Direito das Sociedades Comerciais pelo Centro de Investigação de Direito Privado do Instituto de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

 

 

I. Onde estamos agora?

A adoção da Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas em matéria de Sustentabilidade (CSDDD)[1] foi aprovada, a 15 de março de 2024, pelo Comité dos Representantes Permanentes dos Governos dos Estados-Membros da União Europeia (COREPER) e, no dia 19, pela Comissão dos Assuntos Jurídicos (JURI) do Parlamento Europeu. Isto significa que, após três anos desde a aprovação do primeiro texto desta proposta de Diretiva pelo Parlamento Europeu[2], a CSDDD está agora mais perto de ser aprovada na União Europeia (UE).

Esta Diretiva pretende operacionalizar a responsabilidade das empresas de respeitarem os direitos humanos, conforme prevista nos UNGPs, e as normas ambientais, através da criação da obrigação de estas realizarem, com base no risco, um processo de diligência devida em matéria de direitos humanos e ambiente[3]. Através da implementação deste processo as empresas deverão identificar, prevenir, atenuar, responder e reparar as violações a direitos humanos e os danos ambientais nas suas cadeias de valor globais, a montante e a jusante[4].

Neste sentido, a CSDDD visa ser aplicada a empresas da UE  que tenham, em média, mais de 1000 trabalhadores e um volume de negócios líquido a nível mundial superior a 450 milhões de euros e a empresas de países terceiros que gerem na UE um volume de negócios líquido superior a 450 milhões de euros[5]. No entanto, a CSDDD prevê uma entrada em vigor gradual[6], o que significa que:

  • Feitos 3 anos, a contar da data da sua entrada em vigor, serão abrangidas as empresas da UE com mais de 5000 trabalhadores e 1500 milhões de volume de negócios líquido a nível mundial e as empresas de países terceiros com mais de 1500 milhões de euros de volume de negócios líquido na União;
  • Passados 4 anos, serão as empresas com mais de 3000 trabalhadores e 900 milhões de volume de negócios líquido a nível mundial e as empresas de países terceiros com mais de 900 milhões de euros de volume de negócios líquido na UE; e
  • Após 5 anos, as empresas com mais de 1000 trabalhadores e 450 milhões de volume de negócios líquido a nível mundial e as empresas de países terceiros com mais de 450 milhões de euros de volume de negócios líquido na UE.

Adicionalmente, encontra-se previsto que as empresas serão civilmente responsabilizadas em caso de não cumprimento, sendo estabelecido um período mínimo de cinco anos para pessoas afetadas pelos impactos adversos interporem ações, sem prejuízo das regras nacionais de processo civil[7]. Do mesmo modo, a CSDDD dispõe de elementos sobre a divulgação de provas, medidas cautelares e uma referência ao custo do processo para os autores[8].

Para além da obrigação mencionada, a Diretiva prevê que as empresas devem adotar e pôr em prática um plano de transição para a atenuação das alterações climáticas que vise assegurar, através dos melhores esforços, a compatibilidade do modelo e da estratégia empresariais com a transição para uma economia sustentável e com a limitação do aquecimento global a 1,5 °C[9].

 

II. O que nos trouxe até aqui?

A CSDDD foi o resultado de um longo e árduo processo democrático entre as instituições da UE. Os factos mais recentes que nos levam ao que aconteceu até à data remontam a junho de 2023, quando a maioria dos deputados do Parlamento Europeu apoiou o reforço da proposta legislativa original para a CSDDD. Em dezembro de 2023, um acordo foi alcançado no Parlamento da UE, no entanto surgiram incertezas após as objeções de última hora de Estados-Membros chave, adiando a votação sobre a aprovação no Conselho da UE. A aprovação da CSDDD parecia iminente até 28 de fevereiro, quando o acordo provisório não obteve o aval do Conselho devido à oposição de países como a Alemanha e a Itália. Em seguida, a abstenção da Alemanha foi anunciada, motivada por preocupações do partido minoritário da coligação, o FDP, relativamente ao impacto burocrático e jurídico nas empresas, com o chanceler Scholz a não se opor. Posteriormente, a Itália retirou o seu apoio. Adicionalmente, a França propôs um aumento de última hora no limiar das empresas. Após meses de negociações, França, Alemanha e Itália recuaram, colocando em dúvida os processos democráticos da UE e atrasando a votação da CSDDD, apesar do amplo apoio público da sociedade civil, dos sindicatos e até mesmo das empresas. Em determinado momento, pareceu que estas ações poderiam pôr em risco todos os esforços em direção à aprovação da Diretiva. Felizmente, sob a forte orientação da Presidência Belga, chegou-se a um compromisso para assegurar uma maioria no COREPER. E dias depois, a Comissão JURI também aprovou a CSDDD, com 20 membros a favor, quatro contra e nenhuma abstenção.

Este intenso debate nos últimos meses deixou marcas percetíveis no texto aprovado da CSDDD. Apesar das discussões polémicas, foi possível chegar a um compromisso, sendo que este abrangeu vários elementos essenciais da Diretiva:

  • Âmbito: O âmbito de aplicação da Diretiva sofreu ajustes consideráveis, o que reduziu significativamente o seu alcance. Além disso, as indústrias com impactos ambientais significativos, como a agricultura, deixarão de ter um limiar de trabalhadores mais baixo, e certas atividades como eliminação, desmontagem, reciclagem, compostagem e aterro sanitário de produtos ficaram excluídas do dever de diligência[10].
  • Setor financeiro: Foram estabelecidas disposições específicas para este setor, focando-se principalmente na parte a montante das atividades financeiras[11]. As instituições financeiras serão submetidas a um processo de revisão e reporte para determinar requisitos adicionais de diligência devida adaptados às suas operações[12].
  • Combate às alterações climáticas: Como referido, a Diretiva obriga as empresas a adotar e implementar planos de transição climática em linha com o Acordo de Paris. Nomeadamente, o requisito centra-se agora nos meios e não nos resultados, alinhando-se com a Diretiva de Reporte de Sustentabilidade Corporativa (CSRD) e oferecendo isenções para empresas em conformidade com a CSRD[13].
  • Alterações ao Anexo: O Anexo da Diretiva foi atualizado para incluir novos elementos que abordam os impactos ambientais e nos direitos humanos. Isto inclui o destaque de grupos vulneráveis e convenções centrais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), bem como a expansão da definição de impactos ambientais para incluir desflorestação e serviços do ecossistema[14].
  • Outras questões: A cessação de relações é considerada um último recurso, com disposições para uma desvinculação responsável[15]. Foi incluído um novo artigo sobre o envolvimento significativo com as partes interessadas, definindo as partes interessadas e delineando processos de consulta[16]. Por último, os artigos sobre o dever de diligência e supervisão do conselho de administração foram eliminados e as empresas já não são obrigadas a fornecer incentivos financeiros aos administradores para a implementação de planos de transição climática.

 

III. É este o fim do início?

À medida que a CSDDD avança para a sessão plenária do Parlamento Europeu, em abril de 2024, para a sua votação final, tudo isto significa não o fim, mas sim o início de uma jornada transformadora. Uma vez formalmente aprovada, esta Diretiva marcará um marco significativo na promoção dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental, posicionando a UE como líder global neste esforço.

No entanto, é essencial reconhecer que, embora inovadora, a CSDDD atualmente abrange apenas uma pequena fração das atividades comerciais e empresas da UE, estimada em cerca de 0,05%[17]. Esta cobertura parcial sublinha o desafio contínuo de alcançar objetivos abrangentes de sustentabilidade.

Contudo, esta Diretiva estabelece um precedente crucial, sinalizando uma mudança rumo à responsabilização das empresas pelas violações dos direitos humanos e das normas ambientais.  Assim, esta funciona como um catalisador para a mudança, obrigando as empresas a reavaliarem as suas responsabilidades sociais e abrindo caminho para um futuro mais equitativo e sustentável. Na sua essência, a CSDDD não é o culminar, mas sim o início da construção de uma base equitativa que promove a adoção de práticas sustentáveis na UE.

 

 

[1] Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, 2022/0051 (COD).

[2] Ver Ana Santos Duarte, “Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas e a

Responsabilidade Empresarial”, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 10 de maio de 2021. Disponível em: https://novabhre.novalaw.unl.pt/proposta-diretiva-responsabilidade-empresarial/.

[3] Artigo 4.º.

[4] Artigo 6.º.

[5] Artigo 2.º

[6] Artigo 30.º.

[7] Artigo 22.º.

[8] Artigo 22.º.

[9] Artigo 1.º.

[10] Considerando 18.

[11] Artigo 3.º, (a) e (g).

[12] Artigo 29.º.

[13] Artigo 15.º.

[14] Anexo da Diretiva.

[15] Artigos 7.º e 8.º.

[16] Artigo 8.º, (d).

[17] Ver Sabela Gonzalez Garcia, “REACTION CSDDD endorsement brings us 0.05% closer to corporate justice”, European Coalition for Corporate Justice Blog, 15 de março de 2024. Disponível em : https://corporatejustice.org/news/reaction-csddd-endorsement-brings-us-0-05-closer-to-corporate-justice/.

 

 

Citação sugerida: A. S. Duarte, ‘Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas em matéria de Sustentabilidade: É o fim do início?’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 27 de Março 2024