🇵🇹 O Caso Trafigura: A Falha no Dever Corporativo e Estatal de Diligência Devida dos Direitos Humanos

Sobre os autores:

Miguel Guerreiro é investigador no Center for Responsible Business and Leadership da CATÓLICA-LISBON. Foi estagiário em responsabilidade social e ambiental corporativa na Fundação Vasco Vieira de Almeida, e realizou um estágio de curta duração na Hao.2, uma empresa de inovação social localizada na Irlanda. É licenciado em Direito, e detém um mestrado em Direito Social e Inovação pela NOVA School of Law, é ainda Pós-Graduado em Direitos Humanos pelo Ius Gentium Conimbrigae– Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra.

Tiago Kaputo é atualmente aluno do quarto ano. Tiago estagiou na Varela de Matos & Associados e na Tecnovia SGPS no Departamento Jurídico. No meio académico, Tiago foi um dedicado Editor no Jur.nal- Jornal Oficial dos Estudantes da NOVA School e também colaborou no NOVA DEBATE Club como Diretor de Política de Assuntos Fiscais e Colaborador do Departamento de Eventos. Participou na Spring School 2022 da VDA Academia e colaborou como voluntário na PRO BONO Portugal.

 

 

 

Introdução

Em 2006, a multinacional Trafigura, contratou a empresa Compagnie Tommy para proceder ao descarte de resíduos tóxicos em diversas localizações da cidade de Abdijan, na Costa do Marfim. O despejo, realizado de forma imprópria e insegura, tornou-se num dos maiores casos mundiais de ataque corporativo aos direitos humanos e ao meio ambiente. O incidente vitimou 16 pessoas e impactou a saúde de 40,000 marfinenses. Após uma longa batalha judicial, desde um desastroso acordo financeiro entre o Estado da Costa do Marfim e a Trafigura, e as limitadas sentenças nos Países Baixos e Reino Unido, o caso recuperou agora uma renovada e efetiva justiça pelas mãos do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, que responsabilizou o Estado marfinense pela falha no dever de proteção dos direitos humanos.

 

O Imperialismo do Lixo Tóxico

A descarga ilegal de lixo tóxico compõe o vasto espectro de ofensas ambientais ao mundo em desenvolvimento. Esta prática reiterada [1], contém implícitas conotações e razões sociais e económicas, principalmente, o baixo custo da disposição, a fraca legislação, e debilidade económica dos países em desenvolvimento. Deste modo, o fenómeno deu origem a vários conceitos: imperialismo do lixo, colonialismo tóxico e racismo ambiental. Em particular, o continente africano possui um vasto historial como sujeito destas nefastas descargas. Na década de 80, 20% do lixo tóxico do mundo industrializado era exportado para países em desenvolvimento, cerca de 50 milhões de toneladas somente para África.

A preocupação global e regional com o movimento transfronteiriço e eliminação de resíduos perigosos nos países em desenvolvimento instituiu a necessidade de criar mecanismos regulatórios. Em primeiro lugar, a nível internacional com a Convenção Basileia sobre o Controlo de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e Sua Eliminação (1989), e mais tarde, a nível regional africano, com a criação da Convenção de Bamako (1998).

 

O Incidente

No final de 2005, a Trafigura, empresa multinacional de comércio de mercadorias, adquiriu grandes quantidades de gasolina não refinada (coker naphtha). A empresa esperava lucrar 7 milhões de dólares com a venda do combustível refinado no mercado da África Ocidental. De entre diversos processos de refinaria, optou-se pela “lavagem cáustica”, método que envolve a mistura de soda cáustica com a coker naphtha. Porém, deste processo resulta um resíduo perigoso designado por spent caustic, que, quando tratado sem equipamentos adequados, contém altos níveis de elementos químicos.[2] A Trafigura procurava então um local para dispor o resíduo resultante da refinação.

Após várias tentativas de descarte falhadas em diversos pontos da Europa, em 2006, o navio Probo Koala atracou nos Países Baixos, para descarregar os resíduos sobrantes. Durante a transferência, um cheiro desagradável levou a Amsterdam Port Services (APS), responsável pelo descarte, a fazer testes químicos ao líquido, que determinaram a devolução do material ao navio. O navio partiu assim com destino à Costa do Marfim, com pleno conhecimento e aprovação das autoridades holandesas.

Neste sentido, a Trafigura sub-contrata a empresa Compagnie Tommy, cuja licença para a gestão de resíduos foi emitida semanas antes da assinatura do contrato, para proceder à eliminação do lixo.  O enterro do material tóxico é feito em diversos locais da cidade Abidjan. Logo após o descarte, a população reporta problemas graves respiratórios, neurológicos e cardiovasculares. A tragédia instala-se nos dias subsequentes, 16 perdem a vida e 40,000 pessoas procuram ajuda médica.

 

A Justiça Marfinense (2006)

No rescaldo da descarga, o governo marfinense estabeleceu uma comissão de inquérito, e o Procurador estatal instaurou diversos processos. A comissão concluiu a existência de sistémicas falhas institucionais, contudo, as suas limitadas competências impediram a criação de mecanismos de ação e follow-up no acesso à justiça e compensação. Em 2007, o procurador marfinense acusa Salomon Ugborogbo, diretor da Compagnie Tommy, Claude Dauphin, presidente da empresa-mãe, Trafigura, Jean-Pierre Valentini, diretor do grupo na África Ocidental, e N’zi Kablan da empresa Puma Energy, subsidária marfinense da Trafigura, pela violação da Lei de Saúde Pública e do Código Ambiental que regulam e proíbem “(…) a importação, tráfego, transporte, e depósito” de resíduos tóxicos, pela infração do crime de envenenamento, bem como pela violação da Convenção de Basileia.[3]

De fora, ficaram as entidades corporativas, uma vez que segundo a legislação marfinense, as empresas não poderiam ser responsabilizadas pelos crimes em causa. [4] O procurador deve “furar o véu corporativo”, e examinar as funções desempenhadas por pessoas individuais para atribuir responsabilidade. Na falta de transparência nos processos de tomada de decisão corporativa, ou crime resultante do cúmulo de várias decisões, a culpa não pode ser atribuída a um indivíduo. Frequentemente, os acusados escondem-se por detrás da corporação, e as multinacionais, utilizam a sua complexidade, com vastas redes de cadeias de abastecimento para escapar à responsabilidade legal.

O tribunal condena Salomon Ugborogbo, líder da Compagnie Tommy por envenenamento e violação da lei publica de saúde e lei ambiental, os restantes são ilibados dada a inexistência de uma ação conduzida pessoalmente, e pelo facto de durante a atividade corporativa nada ter ocorrido. Em contradição com a comissão, é ilibado Kablan pois “(…) tinha confiado na palavra da Compagnie Tommy”.

 

O Acordo entre a Trafigura e a Costa do Marfim (2007)

Em 2007, a Trafigura concordou em pagar 190 milhões de dólares ao governo da Costa do Marfim em compensação ao estado e às vítimas devido aos impactos ambientais e de saúde causados pelo enterro do resíduo tóxico. Por sua vez, o Governo decidiu erradicar todas as ações legais em curso e no futuro contra a Trafigura e assumiu responsabilidade por qualquer reclamação futura. O acordo, ficou caracterizado pela sua ambiguidade, o termo, “Partes da Trafigura” foi amplamente referido sem definição, existiam também escassos detalhes acerca dos danos a compensar, e quantias alocadas, e ficou marcado pela benevolência para com a Trafigura.

O acordo resultou numa desastrosa compensação, sendo que apenas um terço da mesma foi canalizada para as vítimas, que durante o processo não foram informadas nem consultadas. A compensação por danos de saúde, desconsiderou a gravidade dos danos e as consequências a longo prazo na sua lista de vítimas. Muitas vítimas não tiveram acesso médico imediato, no entanto, as autoridades utilizaram os formulários preenchidos durante a emergência médica como base da lista de compensação. Vítimas constantes na lista, não obtiveram compensação pois não conseguiram comprovar sua identidade, por não possuírem cartão de identidade.  Estima-se que, apenas 35% das vítimas médicas foram registadas pelo estado. A compensação por danos e perdas foi também ela erraticamente alocada. Após o desastre, 120 oficinas foram forçadas a fechar temporariamente, porém, apenas 17 receberam compensação, no valor de 500 dólares.

 

A Justa, mas Limitada Condenação da Trafigura pelo Tribunal de 1ª e 2ª Instância Holandês (2008)

Por pressão da organização Greenpeace, em 2008, o procurador público estatal intervém na restituição da justiça nos Países Baixos Holanda. E, em 2012 o Tribunal de 1ª instância holandês considerou a Trafigura Beheer BV culpada de exportar ilegalmente resíduos de um país da EU [16], pela violação da secção 18 European Waste Shipment Regulation (EWSR) e ordenou o pagamento de 1 milhão de euros. Condenou ainda a empresa, a par com Naeem Ahmed pela entrega e ocultação de mercadorias perigosas. O capitão do navio Probo Koala foi considerado culpado de cumplicidade na falsificação dos documentos referentes aos resíduos do navio, e na entrega de mercadorias perigosas. Por fim, a APS e o seu diretor foram considerados culpados por violar a Lei de Gestão Ambiental Holandesa ao transferir os resíduos de volta ao navio. A sentença destacou a falha da Trafigura em não ter um plano para a eliminação dos resíduos, a omissão em verificar se Abidjan possuía instalações apropriadas, e criticou o contrato com a Compagnie Tommy, soluções escolhidas “com base em considerações comerciais“. O Tribunal de 2ª Instância Holandês reafirmou a decisão de condenar a Trafigura.

As decisões dos Tribunais de Primeira e Segunda Instância confirmaram que a empresa agiu ilegalmente e violou a lei europeia e holandesa, e atestaram também que os resíduos transportados pelo Probo Koala eram tóxicos e prejudiciais à vida humana. Embora fosse um passo rumo à justiça, a acusação concentrou-se apenas nos eventos e violações legais que ocorreram nos Países Baixos. A lei holandesa contempla a “regra de dupla criminalidade”, pela qual uma empresa ou pessoa holandesa pode ser processada por ato cometido além-fronteiras, desde que este esteja contemplado no Código Penal Holandês e no país da ocorrência. No entanto, em pré-julgamento, o Ministério Público afirmou não investigar potenciais crimes cometidos na Costa do Marfim, devido às tentativas falhadas em conduzir investigação no país.

 

Acordo de Pagamento às Vítimas na Inglaterra (2009)

Em 2009, numa ação cível no Tribunal Superior da Inglaterra e País de Gales, movida em nome de 30.000 vítimas, a Trafigura chegou a um acordo adicional de (US$45 milhões) sem admitir responsabilidade pelo despejo. Porém, houve meios para responsabilizar o Estado por facilitar a entrada de resíduos perigosos na Costa do Marfim. A compensação, implicou a concordância de que não haveria reconhecimento de responsabilidade por parte dos réus pelos danos alegados, os demandantes e os especialistas médicos independentes concordaram em manter informações confidenciais.

 

Decisão do Tribunal Africano (2023)

Uma década depois dos acontecimentos, a Liga dos Direitos Humanos da Costa do Marfim (LIDHO) e a Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH) intentam uma ação contra a Costa do Marfim.  E no final de 2023, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos (TADHP) determina o Estado Marfinense como culpado no seu dever de proteção dos direitos humanos dos seus cidadãos.] O TADHP concluiu que não foi concedida a compensação adequada a todas as vítimas cujos direitos humanos foram violados pela ação da Trafigura.

O TADHP sustentou os seus argumentos com base na Carta dos Direitos Humanos Africanos e dos Povos, especificamente, o direito à vida e à saúde, e declarou que Governo marfinense não usou as diligências essenciais e necessárias na prevenção destes direitos aquando do despejo dos resíduos tóxicos. Referiu ainda que a compensação acordada não foi proporcional aos danos causados e que o acordo assinado no Reino Unido isentou a Trafigura de qualquer responsabilidade, negligenciando a população afetada com atividade ilegal realizada pela multinacional.

 O Tribunal ordenou o Estado da Costa do Marfim a uma reparação pecuniária às vítimas, no prazo de um ano, em consulta com as vítimas, mediante um fundo de compensação a ser financiado com os montantes recebidos da TRAFIGURA e recursos adicionais fornecidos pelo Estado, bem como o pagamento de uma quantia simbólica por prejuízo moral. Por último, o TADHP determinou a abertura de uma investigação independente, neutra e justa de modo averiguar todos os indivíduos responsáveis pelas atrocidades causadas pelo Probo Koala, e uma profunda reforma legislativa com foco na proibição e despejo de resíduos tóxicos na Costa do Marfim.

A decisão, altamente focada na reparação dos danos sofridos pelas vítimas, foi transversalmente apoiada. “Esta é uma decisão histórica do Tribunal Africano que estabelece claramente a responsabilidade do estado pela sua falha em providenciar compensação adequada às pessoas cujos direitos foram infringidos pelos atos ilícitos das empresas,” declarou Alice Mogwe, Presidente da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH). Mogwe afirmou ainda a importância da decisão para que semelhantes eventos não ocorram, e em garantir que empresas e governos não assinem acordos que privem as vítimas de recorrer à justiça. Drissa Bamba, Presidente do Movimento dos Direitos Humanos da Costa do Marfim (MIDH), destacou a importância  da justiça regional do caso na defesa das obrigações de direitos humanos dos estados, especialmente diante de graves violações contra as populações africanas.

 

Conclusão

O caso “Trafigura” ficará marcado na história da temática dos Direitos Humanos e Empresas como um caso paradigmático de danos humanos e ambientais por parte de uma ação corporativa e inação estatal. É um exemplo demonstrativo da falha na diligência devida de uma empresa, Trafigura e de um estado, Costa do Marfim. O desastre revela também o aproveitamento da debilidade regulatória e económica dos países em desenvolvimento por parte das multinacionais, para conduzir práticas proibidas nos países desenvolvidos, neste caso, na Europa.

A cronologia da disputa judicial suscitada pelo caso demonstra ainda o labiríntico percurso transnacional que percorrem muitas das ações corporativas que determinam a violação de direitos humanos, que atravessa diversos países, jurisdições, empresas subsidiárias, e sub-contradas. Esta complexidade escuda a efetivação da justiça às vítimas.

Por fim, podemos concluir que no decorrer da batalha judicial, observamos ao reflexo indireto dos avanços legislativos em matéria de diligencia devida em matéria de direitos humanos e ambiente. O caso Trafigura começou em 2006 com um acordo disforme, numa época de inexistente regulação da área das Empresas e Direitos Humanos, e culminou em 2023 numa compensação justa às vítimas deste infortuno desastre, ano que observou uma preponderância das regulações relativas à responsabilidade social estatal e corporativa em diferentes regiões do globo.

 

Notas de Rodapé

[1] E.g. Em 2013, três contentores de resíduos radioativos provenientes da China foram intercetados na Argélia, e recentemente em 2020, navios de carga provenientes da Itália atracaram na Tunísia, e descarregaram cerca de 7.900 toneladas de resíduos perigosos.

[2] Este resíduo composto por enxofre prejudiciais, incluindo sulfeto de hidrogénio, dissulfetos orgânicos e compostos voláteis chamados mercaptanos. Mediante um catalisador, consegue converter-se os mercaptanos em compostos menos nocivos.

[3] Em causa, estavam a Lei da proteção da Saúde Pública e do Ambiente contra os efeitos de resíduos industriais tóxicos e nucleares e substâncias nocivas, e o Framework law No. 96-766 of 3 October 1996, e o seu artigo 3: a responsabilidade criminal relativa à infração cometida no âmbito da atividade corporativa, recai sobre quem “(…) por sua função, tenha a responsabilidade de gerir, monitorizar ou controlar essa atividade”, e o (Artigo 342) (4).

[4] Segundo a lei penal da Costa do Marfim, as entidades corporativas não podem ser responsabilizadas criminalmente pelas acusações específicas que foram apresentadas. Lei n° 1981-640, de 31 de julho de 1981, que institui o Código Penal, artigo 97.

 

 

Citação sugerida: M. Guerreiro e T. Kaputo, ‘O Caso Trafigura: A Falha no Dever Corporativo e Estatal de Diligência Devida dos Direitos Humanos’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 19th Feburary 2024