About the authors:
Odete Severino Soares é doutoranda e Mestre em Direito da NOVA School of Law, investigadora associada da Cátedra do UNCRC Policy Center da NOVA School of Law e investigadora associada do NOVA Business, Human Rights and the Environment.
Maria Miguel Oliveira da Silva é doutoranda em Direito na NOVA School of Law, assistente convidada da NOVA School of Law, investigadora associada do NOVA Business, Human Rights and the Environment e investigadora do CEDIS e do NOVA Consumer Lab.
No passado dia 22 de agosto de 2023, o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas (adiante Comité) apresentou um novo Comentário Geral (adiante CG/26) à Convenção sobre os Direitos da Criança (adiante Convenção) em relação aos temas dos direitos da criança e o ambiente, com especial destaque para as alterações climáticas.
Oferecendo particular ênfase a três dos atuais vetores fomentadores de preocupação global – a emergência climática, o colapso da biodiversidade e a poluição generalizada –, o Comité apresentou um extenso texto agregador de problemas e soluções que emanam deste enquadramento. De entre os temas versados, são de destacar os seguintes: (i) obrigação dos Estados de respeitar, proteger e cumprir os direitos das crianças; (ii) avaliações de impacto sobre os direitos da criança; (iii) direitos da criança e o setor empresarial; (iv) acesso à justiça e recursos; (v) cooperação internacional; (vi) mitigação e adaptação às alterações climáticas; (vii) perdas e danos; (viii) negócios e alterações climáticas; (ix) financiamento do clima.
O CG/26 estabelece uma ligação direta entre direitos específicos previstos na Convenção e o direito a um “ambiente limpo, saudável e sustentável”, reconhecendo este último como um direito humano em si mesmo (parágrafo 63) e como o pré-requisito necessário para o pleno gozo de todos os direitos da criança (parágrafo 8).
Neste âmbito, é de relevar o papel importante e inovador do novo CG/26, no quadro dos vários tratados de direitos humanos das Nações Unidas. A Convenção e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (artigo 12.º, n.º 2, alínea b), do PIDESC) são os únicos tratados de direitos humanos com uma referência explícita às questões ambientais e à sua relação com os direitos humanos (artigo 24.º, n.º 2, alínea c) e artigo 29.º, parágrafo n.º 1, alínea e) da Convenção), o que nos leva a concluir que a proteção do ambiente tem sido um tema associado aos direitos da criança desde a adoção da Convenção em 1989, o que justifica, em parte, a urgência do Comité em se concentrar neste tema. Num processo inclusivo, o Comité envolveu 16331 crianças de 121 países diferentes na elaboração do CG/26 (parágrafo n.º 2). Este é um dos maiores processos de participação a nível mundial e também do próprio sistema das Nações Unidas, sendo que a riqueza de conhecimentos e experiência das crianças contribui decisivamente para valorização da importância do CG/26.
O CG26 apresenta uma abordagem holística do ambiente, indo para além da proteção do clima, abordando de forma abrangente todos os desafios ambientais, referindo que “embora o presente comentário geral se centre nas alterações climáticas, a sua aplicação não deve ser limitada a nenhuma questão ambiental específica. No futuro, poderão surgir novos desafios ambientais” (parágrafo 5). Nesta abordagem está ainda presente a tripla crise planetária (parágrafo 1), que inclui a emergência climática, o colapso da biodiversidade e a poluição generalizada. Esta abordagem holística do ambiente parte do princípio de que, desde a adoção do Acordo de Paris, os debates internacionais se alargaram para além da questão da redução das emissões de gases com efeito de estufa. Deste modo, abordar a tripla crise planetária através de uma perspetiva de direitos humanos exige mais do que apenas cumprir as obrigações ao abrigo do Acordo de Paris (parágrafo n.º 65 para medidas a tomar imediatamente pelos Estados).
Aspeto importante do CG/26 é a classificação da degradação ambiental como uma forma de violência estrutural contra as crianças. O CG/26 considera a degradação ambiental, incluindo a crise climática, uma forma de violência estrutural[1] contra as crianças (parágrafo 35), referindo ainda que esta “pode causar o colapso social das comunidades e famílias. A pobreza, as desigualdades económicas e sociais, a insegurança alimentar e as deslocações forçadas agravam o risco de as crianças sofrerem violência, abuso e exploração” (parágrafo 35). Neste âmbito, importa perceber o que se entende por “violência estrutural” para se perspetivar o alcance da sua referência no CG/26. O conceito de “violência estrutural” pode ser considerado como uma forma de violência criada pela estrutura do Estado, uma violência institucional, ou por várias estruturas ou instituições, prejudicando as pessoas, impedindo-as de satisfazer as suas necessidades básicas, privilegiando um grupo em detrimento da outra parte da população[2]. Esta perspetiva estava ausente da proposta inicial do CG/26, mas foi incluída pelo Comité em resultado das opiniões das crianças envolvidas (pp. 16-18 do Relatório da primeira Consulta a Crianças[3]). Este alinhamento com as perspetivas das crianças parece evidente, uma vez que a degradação ambiental pode ter um impacto negativo, destruindo aldeias, edifícios, instituições, bem como coisas não materiais como planos e projetos. O aspeto mais negativo da “violência estrutural” é o de ela ser responsável pela instauração de um processo seletivo que tem o poder de decidir quais cidadãos desfrutarão do bem-estar social e quais se incorporarão à grande massa de excluídos[4]. Tudo isto se aplica de igual forma à degradação ambiental e ao seu impacto nos direitos humanos das crianças.
Finalmente, é de assinalar o cuidado do Comité no Comentário Geral em fazer refletir a ideia da criança enquanto consumidora, sobretudo no que diz respeito ao papel da interseção entre os três aspetos que compõem o contexto: criança, consumo e ambiente. A criança tem um papel fundamental nos padrões de consumo do seu próprio agregado familiar, podendo enformar muitas das decisões negociais que são tomadas sobretudo pelos seus progenitores, mas também por si própria. Basta pensar, por exemplo, nos bens que a criança solicita aos pais que adquiram num supermercado, podendo a sua política cívica influenciar decisivamente a sua escolha. Desta forma, a moldura da intenção de compra da criança pode tender para a sustentabilidade ou desviar-se totalmente dessa prerrogativa – decisão essa que comportará, inadvertidamente, no futuro, consequências também para si própria, por conta das alterações climáticas.
Não é ao acaso que o parágrafo 33 estabelece que “as crianças têm o direito de aceder a informações ambientais exatas e fiáveis”, sendo que “essas informações permitem que as crianças aprendam o que podem fazer no seu ambiente imediato no que respeita à gestão dos resíduos, à reciclagem e aos comportamentos de consumo”. Este ponto é particularmente relevante porque veicula (e bem) a ideia de que consumidores informados são consumidores mais conscientes, mas também vice-versa – consumidores conscientes tenderão a procurar mais e melhor informação nas suas transações, eventualmente atingindo estilos de vida sustentáveis. As crianças, ainda que com as suas particularidades, tendem também a seguir este silogismo, desde que dotadas da devida sensibilização para os resultados dos seus padrões de consumo.
A educação para o consumo será, de resto, uma decorrência do próprio direito à educação. Aliás, como determina o parágrafo 53, “todas as crianças devem ser dotadas das competências necessárias para enfrentar os desafios ambientais esperados nas suas vidas, (…) incluindo a capacidade de refletir criticamente sobre esses problemas, resolver problemas, tomar decisões bem equilibradas e assumir a responsabilidade ambiental, por exemplo, através de estilos de vida e consumo sustentáveis, de acordo com as suas capacidades em evolução”.
Este ponto vem precisamente reforçar que a sensibilização para o consumo consciente decorre também da capacitação das crianças para tomarem decisões esclarecidas nas suas vidas, nomeadamente quanto aos seus hábitos de consumo. Não basta que a criança esteja sensível ao problema que constitui, por exemplo, a aquisição de um bem que contribui para a desflorestação. É impreterível que esteja dotada de ferramentas que lhe permitam identificar boas práticas, resistindo, de forma crítica, a publicidade não fidedigna. A propósito, estabelece parágrafo 81 que “as normas de comercialização devem assegurar que as empresas não induzam em erro os consumidores, em particular as crianças, através de práticas de greenwashing, através das quais as empresas retratam falsamente os esforços para prevenir ou mitigar os danos ambientais”. Este aspeto é fundamental. O consumidor adulto médio, em geral, ainda não é capaz de identificar estas práticas, sendo um desafio particularmente mais significativo para as crianças. Um bom ponto de partida para a concretização de todo este clausulado poderá ser o de educar a criança para a rotulagem.
Por fim, o parágrafo 107 determina que “os Estados deverão assegurar que as empresas reduzam rapidamente as suas emissões e deverão exigir às empresas (…) que realizem avaliações de impacto ambiental e procedimentos de diligência devida sobre os direitos das crianças, a fim de garantirem que identificam, previnem, mitigam e prestam contas de como abordam os impactos adversos reais e potenciais relacionados com as alterações climáticas nos direitos da criança, inclusive os resultantes de atividades relacionadas com a produção e o consumo e os relacionados com suas cadeias de abastecimento e operações globais”. Esta disposição, vocacionada para instar as empresas ao controlo das suas rotas comerciais, tem a virtualidade de fazer recair sobre elas a obrigação de adotarem práticas “mais justas” nos seus procedimentos, não só salvaguardando o meio ambiente como disponibilizando bens e serviços no mercado que não ofendam contundentemente os direitos da criança – seja a criança que adquire, seja a criança que (infelizmente) produz.
O CG/26 surge num momento crucial para a proteção dos direitos ambientais, desenvolvendo as obrigações dos Estados para com os direitos das crianças, numa perspetiva presente e futura. Salienta a posição única das crianças ao herdarem um mundo marcado pelo aumento das temperaturas, por fenómenos meteorológicos frequentes de elevada intensidade e por crescentes desigualdades sociais relacionadas com o clima. Ao estabelecer uma relação direta com os direitos consagrados na Convenção, o CG/26 impõe aos Estados uma maior proteção dos direitos das crianças, bem como obrigações mais exigentes em matéria de proteção ambiental. No seu conjunto, este é um desenvolvimento positivo tanto em termos de direitos humanos como também de direito do ambiente, e reflete a história recente de litígios ambientais registados em vários Estados, tendo como partes as crianças/jovens nos mesmos[5].
[1] Cfr.https://www.unicef.org/rosa/media/1966/file/Structural%20violence%20against%20children%20in%20South%20Asia%20.pdf.
[2] Costa, MM Marli; Porto, T.C. Rosane, “Exclusão social, violência estrutural e delinquência juvenil: uma análise a partir Michel Foucault”, Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 4, p. 83-103, jul./dez.2008.
[3] Cfr. https://childrightsenvironment.org/wp-content/uploads/2022/09/Report-of-the-first-Children-and-Young-Peoples-Consultation.pdf.
[4] Idem.
[5] Sacchi Et Al v Argentina, Brazil, France, Germany & Turkey – Committee of the CRC (2019); Ali v Federation of Pakistan – Pakistan (2016); Juliana v United States – United States (2015); Oposa vs Factoran – Philippines (1993); Pandey vs Union of India and Central Pollution Control Board – India (2017).
Suggested citation: O. S. Soares e M. M. O. da Silva, ‘Novo Comentário Geral 26 à Convenção sobre os Direitos da Criança: Os Direitos das Crianças e o Ambiente, com Especial Destaque para as Alterações Climáticas, Apresentado pelo Comité dos Direitos das Crianças’, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 22nd January 2024