Sobre os autores:
Luís Prata e Castro é Mestrando em Direito e Gestão na NOVA School of Law, licenciado pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, e Business Development Specialist na Vieira de Almeida. Luís é Investigador Associado do NOVA Knowledge Centre on Business, Human Rights and the Environment.
Teresa Brito e Faro é Mestranda em Direito Internacional e Europeu na NOVA School of Law, licenciada em Direito pela Universidade do Porto, e advogada-estagiária do departamento de propriedade intelectual da Garrigues. Teresa é Investigadora Associada do NOVA Knowledge Centre on Business, Human Rights and the Environment.
Introdução e Resumo da Decisão:
A empresa holandesa de moda G-Star Raw, conhecida por comercializar vestuário em ganga, foi condenada ao pagamento de uma indemnização de cerca de 2.3 milhões de euros a uma fornecedora vietnamita, a Vert, pelos prejuízos causados pela quebra de encomendas durante o período da pandemia. O tribunal de Amesterdão considerou que a G-Star Raw é responsável pelos prejuízos causados, nomeadamente danos emergentes e lucros cessantes sofridos pela fabricante vietnamita, ao cessar de forma repentina e contrária à lei a realização de encomendas, após uma relação comercial estabelecida em 1998. As duas empresas celebraram um contrato de fornecimento em 2018 que previa a produção pela Vert e fornecimento à G-Star de 100.000 casacos por ano, durante três anos.
Em abril de 2020, a G-Star anunciou que ia parar de realizar novas encomendas, tendo inclusive cancelado encomendas já feitas. A empresa justificou esta decisão com as dificuldades trazidas pela pandemia Covid-19. Contudo, fez posteriormente uma encomenda a um fornecedor do Bangladesh de 56.000 casacos idênticos aos habitualmente produzidos pela Vert.
A quebra contratual levou à venda da fábrica da Vert, por incapacidade de encontrar novos clientes num curto espaço de tempo e de manter os custos de operação. Para o cálculo da indemnização são discutidos inúmeros custos incorridos pela Vert, resultantes da decisão de interrupção das encomendas pela G-Star, tendo o tribunal considerado que existia um elemento de conexão entre a decisão da G-Star e os custos e danos sofridos.
Apenas os custos de alojamento e deslocação de dois trabalhadores e de auditoria foram considerados desconectados com a decisão da G-Star de interromper as encomendas. O tribunal determinou ainda que os custos em que a Vert incorreu ao tentar atingir uma solução com a G-Star e ao vender a fábrica deveriam ser reembolsados a título de custos de mitigação de perdas.
Na sua política de Responsabilidade Social Corporativa (RSC), a G-Star comprometia-se, nomeadamente, a promover condições de trabalho justas e seguras e a proteger os direitos humanos:
«No que diz respeito às pessoas na nossa cadeia de fornecimento, o nosso principal objetivo é conseguir condições de trabalho justas, seguras e saudáveis, bem como proteger os direitos humanos. Participamos em parcerias chave da indústria e utilizamos ferramentas padronizadas da indústria para monitorizar as condições de trabalho».
Contudo, a verdade é que o contrato celebrado com a Vert não obrigava a G-Star a fazer um número mínimo de encomendas, pelo que esta não poderia ser responsabilizada meramente com base em incumprimento contratual. Resta, portanto, compreender em que é que o tribunal se baseou para condenar a G-Star no pagamento de uma indemnização milionária.
Em suma, o tribunal decidiu que a G-Star tinha a obrigação de fazer encomendas em certa quantidade e regularidade, não com base na letra do contrato, mas nos princípios de razoabilidade e equidade, que são vinculativos ao abrigo do direito holandês. O tribunal considerou que a G-STAR quebrou a sua obrigação ao abrigo deste princípio, nomeadamente, pelas seguintes circunstâncias:
a. Pelo facto de ter colocado a Vert numa situação invulgarmente difícil e imprevisível, uma vez que ocupava toda a capacidade de produção da fábrica há vários anos, desde 1998.
b. Pelo facto de ter uma política de Responsabilidade Social Corporativa que violou ao tomar uma decisão que resultou (previsivelmente) em despedimentos súbitos.
Os Contratos e Políticas de RSC
Os contratos comerciais são parte integrante da prática comercial atual e tem cada vez maior capacidade de endereçar questões ambientais e de direitos humanos, devendo ser utilizados como uma ferramenta para melhorar as práticas de contratação no âmbito das cadeias de fornecimento. Esta condenação dá luz novamente à necessidade da utilização de cláusulas de contratação responsável, em que os riscos são partilhados entre comprador e fornecedor e que se evita uma transferência de risco para a parte mais vulnerável. Destacamos três iniciativas relativas a cláusulas contratuais modelo que incorporam diligência devida em matéria de direitos humanos e ambiente (DDDH): a American Bar Association, criadora das American Model Contractual Clauses, que incorporam DDDH nos contratos comerciais e evitam este tipo de casos e asseguram uma relação comercial que tem em conta os impactos de direitos humanos e no ambiente. O Responsible Contracting Project criou o Responsible Contracting Toolkit, que fornece modelos para contratação alinhada com a prática de DDDH, seguindo três grandes princípios: a alocação responsável do risco e de responsabilidade; práticas de compra responsáveis e remediação em primeiro lugar alinhada com a rescisão contratual responsável. É também de destacar a recente iniciativa de criação das European Model Contractual Clauses, desenvolvidas por juristas, docentes e advogados que estiveram em consulta pública e pretendem criar cláusulas modelo adaptadas ao quadro jurídico da UE e que permitam incorporar a realização de DDDH. Tendo como base a esquematização operada no artigo “Contracting for human rights: experiences from the US ABA MCC 2.0 and the European EMC projects”, uma conduta empresarial responsável começa pela integração nas políticas e sistemas de gestão das empresas da DDDH, tendo a relação contratual impacto direto nesta integração. A partir desta codificação, possivelmente através de códigos de conduta de fornecedores das empresas adquirentes e também através das políticas de RSC e da implementação dessas normas internas nos sistemas de gestão, deverá seguir-se a identificação e a avaliação de impactos adversos em operações, cadeias de fornecimento e relações de negócio, sendo oferecido apoio ou cooperação da empresa adquirente aos seus fornecedores na remediação de impactos adversos detetados. Devem seguir-se fases de cessação, prevenção e mitigação dos impactos, acompanhadas de uma monitorização da implementação dos resultados e por fim a comunicação de como são abordados esses impactos.
Não é negligenciável o impacto que as práticas comerciais das empresas têm e podem ter em direitos humanos e ambiente e respetivas consequências jurídicas. As diretrizes sobre conduta empresarial responsável para empresas multinacionais da OCDE referem a necessidade de partilha do risco e ainda a possibilidade de desvinculação responsável em caso de incapacidade de cumprir com as expectativas vertidas nos códigos de conduta, dando destaque mais uma vez à necessidade de informar previamente os fornecedores. No caso em concreto, não foram apontados impactos adversos de direitos humanos e ambiente à fornecedora que poderiam dar origem a esta desvinculação responsável.
A RSC é interpretada como uma atividade empresarial que contribui para a sustentabilidade, tendo em consideração os impactos, económicos, sociais e ambientais de decisões de negócio que ultrapassem os requisitos legais mínimos. É também de destacar a correlação entre RSC e sustentabilidade, quer pela relevância da interligação dos diversos stakeholders, a inclusão da sustentabilidade na definição de RSC, tendo também a dimensão ambiental na pesquisa sobre RSC e também da pesquisa sobre sustentabilidade (Atif et all; 2023). A empresa afirma que “A G-Star Raw compromete-se através de uma política de RSC com quatro pilares: uma cadeia de fornecimento responsável, produtos sustentáveis, operações sustentáveis e o envolvimento da comunidade”. O código de conduta aplicável à situação relatada, o de 2019, refere a necessidade de os fornecedores garantirem o pagamento dos salários regularmente e a tempo. A atuação da G-Star RAW colocou em causa este direito que consagra no código, o que poderá ser mais um fator a contribuir para o vencimento de causa da fornecedora. O facto de referir que, no âmbito de uma cadeia de fornecimento responsável, tem como filosofia a construção de relações de confiança e de longo termo com fornecedores de forma a assegurar a qualidade e a entrega das coleções e ainda de que metade do volume de produção é assegurado por fornecedores cuja relação contratual perdura há mais de 10 anos realça que a prática adotada em relação à Vert não é legítima.
A RSC é um guião para toda a atuação da empresa e revela um compromisso com todos os stakeholders, é disponibilizada publicamente e cria expectativas legítimas por parte dos mesmos stakeholders. Como tal, a materialização de políticas de RSC, com os temos acima assinalados implica a vinculação da atuação da G-Star Raw a uma a contratação e cessação responsável.
Conclusão:
As políticas de RSC representam uma vinculação a uma conduta e os desvios a essa conduta podem conduzir a litigância “ESG”. A litigância climática/ESG têm registado um aumento significativo, com 2.341 casos detetados, 190 nos últimos 12 meses entre maio de 2022 e maio de 2023 no Snapshot Global Triends in Climate Change Litigation. É possível identificar ainda 17 casos entre 2015 e maio de 2023 relacionados com metas de transição climáticas de empresas e 57 casos relacionados com “climate-washing”, sendo 52 deles contra empresas. Estes números demonstram que as políticas e planos divulgados por empresas terão cada vez mais escrutinados e sindicados judicialmente, devendo, portanto, a criação de políticas de RSC ser vista de forma holística, considerando também a Governança das Sociedades e as Cláusulas Contratuais.
Citação sugerida: L. P. Castro e T. B. Faro, ‘Caso G-Star Raw vs Vert: a Contratação e Cessação Responsável como novo dever no âmbito da Responsabilidade Social Corporativa?‘, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 1 de Julho de 2024